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«Já se fazia tarde e El-Rei Afonso convidou-os para manjarem. Sobre a
mesa estavam grossas fatias de pão que iriam comer com vitela assada. Os
hábitos rudes faziam com que utilizassem as mãos no manjar da iguaria.
Regaram-na com vinho. O cheiro a cão sobrepunha-se ao da carne assada. Os
animais, com as patas, tentavam tirar os restos de comida do soalho. Como
estava frio tinha sido colocada palha no chão, mas esta estava impregnada de
diferentes cheiros.
- Então digam lá, suas cabeças buenas... o que vão fazer? - perguntava Afonso,
enquanto atirava um grande osso aos cães, que guerreavam entre si rosnando e
soltando alguns latidos. Bernardo de Trava suscou os dentes com a língua,
limpou a boca à manga do gibão, bebeu um trago de vinho, alrotou, e disse:
- Bom, vamos organizar uma peregrinação
a S. Vicente de Lixbuna, passando
pelo mosteiro de Cister em Al-Cobaxa,
e vamos saber o que se passa ... a única maneira de sermos discretos é passarmos
por gente do povo.
- Preocupem-se mas é com o que
se passa à volta dos monges de Cister!!!... Nós também os cá temos e ouço
muitas coisas! - disse El-Rei. Subitamente um criado entrou na sala e segredou
algo a Fernandizi.
- Que se passa hombre??? - perguntou
Sua Majestade, El-Rei Afonso, a Ponce Fernandizi. Senhor meu Alfonso... chegou
um emissário de Roma respondeu-lhe o anfitrião.
As duas portas do salão abriram-se de par em par. Um homem alto,
esguio, de barba rala, ar frio e distante entrou na sala. Ao ver aquele padre
vestido de negro, o rei teve um sobressalto. As botas negras ressoavam no chão
de madeira. - Senhor meu Alfonso - saudou o eclesiástico, baixando ligeiramente
a cabeça, em tom de reverência. - Um só reino e uma só religião!... Posso tomar
lugar à vossa mesa? - perguntou.
O rei levantou-se e os restantes ficaram mudos de susto. - Senhor frei
Raimundo, tomai assento - disse o monarca.
O homem sentou-se e descalçou as luvas negras, que colocou em cima da
mesa. Enquanto comia frugalmente ninguém dizia palavra. Todos se olhavam com
desconfiança, sorrindo entre dentes. De repente o silêncio foi interrompido:
- Que novas me contais desde a
última visita? – perguntou frei Raimundo, enquanto estalava os dedos das mãos. -
Bom, Senhor Raimundo. O rei não se mostrou muito seguro. - Não sabeis, Vossa
Majestade?... Digo-vos eu. O herético do vosso primo anda a fazer pactos com as
trevas. Há vinte anos que nomeou um Bispo Negro, um moçárabe e obrigou, à força
da espada, o legado do papa a retirar-lhe a excomunhão. Em vez de esmagar os
culpados da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo dá-lhes prerrogativas. Até tem
um que lhe trata das finanças. A Santa Igreja não está contente! - subitamente,
deu um murro na mesa, fazendo estremecer todos os presentes.
- E os vossos druidas galegos
estão bons? - perguntou. - Não tenho conhecimento que haja druidas e bruxas no
meu reino... atreveis-vos a duvidar de mim?!!! - exclamou El-Rei Afonso. - Claro
que não, Majestade! - disse Raimundo, enquanto cofiava o queixo. - Não vos
esqueçais que faz frio e as fogueiras aquecem. É preciso proteger os pescoços,
podeis constipar-vos! - ameaçou, em tom irónico.
- Mas ao que vindes?...
Deixai-vos de histórias... – O monarca Afonso começava a ficar perturbado com
aquela visita.
- Venho avisar-vos, pessoalmente, para que cuideis bem de Compostela,
Majestade. É um lugar da igreja romana!... Tende cuidado convosco. Podeis ser
excomungado!... Não vos esqueceis que sem religião, não tendes reino, Vossa
Alteza.
- Mas, Senhor Raimundo,
continuamos a praticar o Ordálio (julgamento de hereges, técnica de execução
pela água e pelo fogo) - ripostou o rei. - Bem sei, D.Majestade, bem sei Vossa
Majestade... mas os portucalenses têm documentos que devem ser destruídos!
Lembrai-vos que antes de Roma existiram mais três impérios, que se digladiaram,
e o cristianismo ainda não é, a religião universal, Vossa Alteza! Os Templários
sonham com um novo império... o quinto... Começais a perceber-me Majestade? - o
seu tom maquiavélico soava de forma inequívoca.
El-Rei Afonso levantou-se lívido e disse: - Senhores, vou retirar-me...
Tenho de ir para Zamora, portanto... boas noites a todos! Senhor Ponce com a
vossa licença... meus senhores...
- Acompanho-vos aos vossos
aposentos, Majestade… afirmou Ponce Fernandizi, o anfitrião. Os nobres
soergueram-se e quando o rei saiu, voltaram a sentar-se. Os irmãos Trava
aproveitaram o momento:
- Nós também saímos. Já se faz
tarde! - disseram. Fernão virou-se para Bernardo e disse-lhe em sussurro:
- A nossa Galiza vai morrer às
mãos dos Castelhanos ! Começo a ter inveja dos homens de Afonso Henriques!» In
Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta,
Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT