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Estudo biobibliográfico
«No decurso da invernada da Nazaré em Moçambique, acedendo Pedro de
Castro à solicitação instante dos enviados de Zanzibar e Pemba, resolveu trazer
de novo à obediência daqueles régulos as ilhas de Querima, ao tempo submetidas ao
rei de Mombaça.
Para tanto, embarcou no batel da sua nau, no esquife de Cristóvão de
Sousa e em vários paraus indígenas, cerca de cem homens, entre eles António
Galvão, que muito se distinguiu nas escaramuças travadas com as gentes de
Querima e Mombaça, pondo em debandada, com poucos companheiros, poderosas
formações inimigas que acometiam grupos isolados de portugueses, Libertando
Cristóvão de Sousa do aperto em que os mouros o tinham e impedindo a chegada de
reforços ao adversário.
Conseguido o objectivo de sujeitar as ilhas à soberania de Zanzibar, e
perdido, pelo afundamento das embarcações que deviam transportá-lo, o rico
despojo de duzentos mil cruzados, resolveu Pedro de Castro tornar a Moçambique
e conceder a António Galvão o comando do esquife, que os ferimentos impediam
Cristóvão de Sousa de reassumir.
Não foi desprovida de incidentes a navegação de regresso, em que Galvão
e os seus homens passaram assaz de trabalhos, fome e sede, e pelejaram, em grande
desproporção numérica, com os íncolas de uma povoação das cercanias, aos quais
venceram e compraram os mantimentos de que careciam, tendo Galvão o ensejo de exercer
ali, pelo perdão concedido a quem premeditara hostilizá-lo, a política
conciliatória que tanto o celebrizou depois.
Em Agosto de 1523, após o desembarque de passageiros e tripulantes, foi
a Nazaré ao tempo em que ainda permanecia fora da barra de Goa, batida por
formidável tormenta, que o pôs em perigo iminente de soçobrar, tornando
audaciosa loucura qualquer tentativo de auxílio.
Com a decisão e desprezo do perigo que o caracterizavam, saltou Galvão
para o primeiro batel que topou, acompanhado de alguns amigos e criados e de
seis ou sete que o haviam sido de seu pai, e aproou resolutamente à nau, a
despeito da fúria dos ventos e mares encapelados, surdo às vozes apavoradas que
lhe requeriam o desembarque sob pena de perdição inevitável.
Retorquiu o herói que o não movia a salvação de fazenda sua mas sim da
de el-rei e da própria nau, propósito de que o não andariam homens amedrontados
nem elementos enfurecidos.
Constatando logo que o timoneiro caminhava para terra, compeliu-o, sob
ameaça de morte imediata, a pôr a proa ao mar que sulcou em perigo constante de
vida.
Entrada a nau, a despeito da ressaca violenta, e patente a
impossibilidade de salvamento, assentaram Galvão e Pedro de Castro em dar à
vela e entrar pela terra dentro, valendo-se da maré cheia. Assim se fez e assim
acabou a Nazaré , sem perder de todo a carga e sem da cidade ousar ninguém
acudir-lhe, com medo do mar.
A amizade guardada por António Galvão a Pedro de Castro salvou este de
provável morte, pouco depois, quando ambos se encontravam de passagem em Calecute,
o bordo da frota que o governador da Índia, Duarte de Lemos, levava a Cochim,
em viagem de inspecção das fortalezas costeiras.
Foi o caso que indo Pedro de visita à cidade, na companhia de uns quantos
portugueses, os provocaram os mouros, levando a ousadia ao ponto de ferirem
alguns, que procuraram alcançar a fortaleza em precipitada fuga. António
Galvão, que, receoso, acudia, com quatro criados, em busca do amigo, vendo a
fúria dos mouros armados que rodeavam aquele, fez-lhes frente e tentou
demonstrar com razões o despropósito que os movia, protegendo simultaneamente a
retirada de Pedro para a fortaleza, por uma rua estreita, não sem que o
adversário redobrasse de insolência, batendo nos escudos e brandindo as
agomias.
Perante o temeridade de um hércules mouro que pretendia à força ferir Pedro,
trovaram os portugueses das espadas, não resistindo António Galvão ao desejo de
desafiar o atrevido, e a outro que o igualava em petulância, puro combate
singular, e isto com tanta decisão que o adversário acuou e os portugueses
retiraram livremente.
Terminada a viagem do governador a Cochim, tornou António Galvão ao
reino em uma das naus que zarparam da Índia no começo de 1524». In António
Galvão, Tratado dos Descobrimentos, Livraria Civilização Editora, Biblioteca
Histórica de Portugal e Brasil, Porto, 1987.
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