Sobre Manet, Gauguin e Braque
«Edouard Manet nasceu em Paris. Dos 19 aos 23 anos foi discípulo de
Thomas Couture, pintor de quadros históricos, sucessor do barão de Gros e
bastante apreciado, no seu tempo e no seu meio. Não foi, porém, Couture quem o
impressionou; Manet, como tantos artistas da sua geração, caiu bem depressa sob
a poderosa influência de Gustavo Courbet, que era então extremamente considerado
e admirado. De facto, Courbet exprimia magnificamente a grande aspiração
realista da sua geração e da sua classe, da sua burguesia, um tanto pesada e
lenta, de compactas convicções liberais e actuantes, sem dúvida forte e em
marcha, capaz de grandes empresas, pletórica de energia e ávida de ‘objectividade’.
Ao exprimir-se livremente, na sua honestidade implacável e maciça,
Courbet criou uma pintura sem tibiezas, franca e saudável, rindo sonoramente na
cara daqueles que lhe falassem de mistério, de imponderáveis, de devaneios poéticos
ou de arrobos transcendentais de uma qualquer febril sensibilidade. Courbet
ergue-se no meio do século dezanove como uma árvore de tronco largo e braços abertos,
pulsando de terra e sangue, às vezes quase grosseiro, mas sempre corajosamente
afirmativo. A golpes de pincel varreu das telas velhos fantasmas, as alucinações
românticas, os delíquios sombrios, as teias lúgubres que pendiam ainda pelos
recantos esconsos de uma arte aristocrática em decadência.
Manet entusiasmou-se na sua juventude com a fogosa violência desse
atleta e deixou-se contagiar pelo seu espírito libertário, embora mais tarde
acusasse Courbet de ser ainda demasiado escuro e de o seu ideal ser a bola de
bilhar. ‘Pinto aquilo que vejo e não aquilo que gostam de ver os outros’,
afirmou, com pouco mais de vinte anos, como o poderia ter afirmado o mestre que
tanto admirava então. E, na esteira da escola de Barbizon, reagiu contra a
artificialidade da luz dos ateliers, contra as poses convencionais e
académicas, contra as trevas que obscureciam a tela como uma gangrena
incurável. Partiu para o campo, para o ar livre e para a luz plena do sol a
pino.
Não quebrou, todavia, com o passado, como poderíamos supor ao
considerá-lo superficialmente. Ele sentia, bem ao contrário, o valor e a
importância da tradição, e procurava, no silêncio dos museus, uma lição tantas vezes
esquecida ou desvirtuada, mas profunda e latente. Fez cópias de Ticiano, de
Filippino Lippi, de Ghirlandaio; admirava os flamengos e, entre estes, Franz
Hals. Os espanhóis, sobretudo, exerciam sobre ele uma poderosa atracção. Talvez
tenha contribuído para esse culto ibérico o facto de em 1860 ter actuado em
Paris uma companhia de bailarinas da península, que Manet aplaudiu
entusiasmado, inebriado com a novidade dos ritmos, com a alacridade dos
coloridos, com aquilo a que em Espanha chamam ‘esperpento’. Talvez, mais do que
tudo, houvesse nos mestres da pintura espanhola algo que ia ao encontro das
suas mais íntimas aspirações picturais.
A verdade é que Velazquez, Greco e Goya, que ele viu durante a sua
estada no país vizinho, imprimiram na sua sensibilidade uma dedada imperecível.
Conjugando, assim, uma compreensão apaixonada dos antigos com um ardente desejo
de renovação plástica, Edouard Manet pintou, em 1863, com trinta anos de idade,
as suas duas primeiras obras-primas:
- Olympia;
- Dejeuner sur L’herbe.
A ‘Olympia’ foi enviada ao Salon
oficial e provocou um escândalo sem precedentes. Paris dividiu-se em dois
grupos: um que insultava Manet (a esmagadora maioria); outro que o aplaudia (uma
escassa minoria encabeçada por Zola)». In Lima de Freitas, Voz Visível, Ensaios,
União Gráfica, Lisboa, 1971.
Cortesia de U. G./JDACT