quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Textos Esquecidos. O Mestre Assassinado. Crónica dos Templários. 1320. Alexandre Herculano. «Pouco a pouco foi quebrando o vento: as nuvens se espalhavam para o ocidente, as vagas cruzadas que trepavam aos rochedos estoiravam com menos horroroso bramido. A Lua tinha surgido nos céus, e mandava seus raios suaves a consolar a Terra»

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«Naquela ponta de um promontório, que fica ao leste, na ilha de Mull, uma das Hébridas, campeavam ainda as paredes e tectos meio arruinados da gótica ermidinha de S. João. Os Serracenos, pirateando até os mares do Norte, a haviam acometido e roubado. Deserta desde então, sé era frequentada pelos pescadores que junto ao cabo vinham às vezes lançar suas redes, e que nela se abrigavam, quando alguma tempestade os salteava de improviso.
Era ao fim da tarde. Antes de tempo um bulcão negro e medonho tinha espalhado as trevas da noite: a tormenta soava nos mares com temeroso ruído e o vento assoviava pelas escadas da ermida; e pedaços de vidros quebrados tiniam caindo das frestas esguias. Patrício, o moço barqueiro, se tinha abrigado debaixo da alpendrada da igreja com o pequeno David, seu companheiro: debalde havia batalhado por cortar, através das penedias, para o interior da ilha, onde habitava; em vão acendera um facho: o vento lho apagara logo. Esperava ali que a tempestade se aquietasse. A sua barca, presa por um forte cabo, jazia segura na enseada, posto que batida pela inquieta ressaca.
Pouco a pouco foi quebrando o vento: as nuvens se espalhavam para o ocidente, as vagas cruzadas que trepavam aos rochedos estoiravam com menos horroroso bramido. A Lua tinha surgido nos céus, e mandava seus raios suaves a consolar a Terra.
Era tempo de voltar a casa: o pobre David com instancia o pedia ao barqueiro; mas este não o escutou. Atento aplicava o ouvido para o lado do eremitério. De repente, com voz sumida e trémula, disse, tapando a boca ao rapaz:
 - Anjo da minha guarda! Que ouço! Vozes de homem neste ermo! Não vês o clarão frouxo que sai daquela janela que está ao rés-do-chão? Vai rapaz, manso, manso, examina o que é: porque dali sai o som. Mas toma sentido: olha não te pressitam. Mas vai; senão! Posto que tremendo, assim o fez David. Manso, e manso, se foi chegando à janela; e com pasmo viu o que se passava dentro daquele recinto. Um subterrâneo comprido se estendia ao longo do eremitério, esta janela ficava em um dos topos: mas desde muitos anos que nenhum habitante de Mull passava por junto dela. Contavam-se muitas histórias a respeito daquela janela, e os crédulos pescadores, não tendo necessidade de examinar esse mistério, quando iam ao promontório procuravam sempre afastar-se dela.
Ao clarão de uma luz baça, grande número de homens desconhecidos ali estavam, e em linguagem ininteligível pareciam altercar uns com os outros. Cobertos com mantos brancos, cada um tinha na mão uma espada reluzente. A débil claridade do subterrâneo e o terror do rapaz lhe tolheram o divisar mais nada. Patrício sentiu correr-lhe pelos membros um suor frio, quando David lhe veio dizer o que vira, e fez o sinal-da-cruz.
 - Santo Deus! São certamente aqueles fidalgos franceses que vieram há anos ter a esta ilha, e que em certos dias se ajuntam neste ou em outro sítio. Vamo-nos daqui embora não nos suceda alguma! Ai de nós se percebem que os espreitámos. Um deles cegou Murray só porque lhe disse algumas palavras pesadas. Anda! Vamo-nos embora.
Dito isto agarrou na mão a David, e o foi quase a rastos levando atrás de si pelos fraguedos da serra. Os socos dos dois barqueiros ressoaram pelas pedras, e a sombra de seus corpos se prolongava pelos penhascos, onde o luar de chapa: foram sentidos!
O grito de alto lá! Que reboou por aquelas quebradas, os fez parar de repente. Um homem vestido de branco e com a espada nua na mão se lhe pôs diante: o seu ar era ameaçador. David se arrojou por terra, e Patrício, aterrado, deitou para trás o capuz do felpudo gibão, e clamou com voz truncada:
 - Perdão! Perdão! Eu não o sabia! Foi o acaso e a tempestade quem me trouxe ao pé da ermida! - Que é lá isso, irmão? – Perguntou outro, que saiu da porta da ermida, também vestido de branco.
 - Chove! Respondeu energicamente o primeiro. – Tende mão nos profanos! Replicou o outro, recolhendo-se apressadamente para dentro.
Não era necessário usar da força para executar esta ordem; já o terror tinha tornado imóveis os dois miseráveis. Bem viam que o terrível estrangeiro não gracejava com eles». In Alexandre Herculano, O Mestre Assassinado, Narrativa Histórica Portuguesa, Antologia, Colecção Textos Esquecidos, Guimarães Editores, Lisboa, 1992,

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT