«Naquela ponta de um promontório, que fica ao leste, na ilha de Mull,
uma das Hébridas, campeavam ainda as paredes e tectos meio arruinados da gótica
ermidinha de S. João. Os Serracenos, pirateando até os mares do Norte, a haviam
acometido e roubado. Deserta desde então, sé era frequentada pelos pescadores
que junto ao cabo vinham às vezes lançar suas redes, e que nela se abrigavam,
quando alguma tempestade os salteava de improviso.
Era ao fim da tarde. Antes de tempo um bulcão negro e medonho tinha
espalhado as trevas da noite: a tormenta soava nos mares com temeroso ruído e o
vento assoviava pelas escadas da ermida; e pedaços de vidros quebrados tiniam
caindo das frestas esguias. Patrício, o moço barqueiro, se tinha abrigado
debaixo da alpendrada da igreja com o pequeno David, seu companheiro: debalde
havia batalhado por cortar, através das penedias, para o interior da ilha, onde
habitava; em vão acendera um facho: o vento lho apagara logo. Esperava ali que
a tempestade se aquietasse. A sua barca, presa por um forte cabo, jazia segura
na enseada, posto que batida pela inquieta ressaca.
Pouco a pouco foi quebrando o vento: as nuvens se espalhavam para o
ocidente, as vagas cruzadas que trepavam aos rochedos estoiravam com menos
horroroso bramido. A Lua tinha surgido nos céus, e mandava seus raios suaves a
consolar a Terra.
Era tempo de voltar a casa: o pobre David com instancia o pedia ao
barqueiro; mas este não o escutou. Atento aplicava o ouvido para o lado do
eremitério. De repente, com voz sumida e trémula, disse, tapando a boca ao
rapaz:
- Anjo da minha guarda! Que
ouço! Vozes de homem neste ermo! Não vês o clarão frouxo que sai daquela janela
que está ao rés-do-chão? Vai rapaz, manso, manso, examina o que é: porque dali
sai o som. Mas toma sentido: olha não te pressitam. Mas vai; senão! Posto que
tremendo, assim o fez David. Manso, e manso, se foi chegando à janela; e com
pasmo viu o que se passava dentro daquele recinto. Um subterrâneo comprido se
estendia ao longo do eremitério, esta janela ficava em um dos topos: mas desde
muitos anos que nenhum habitante de Mull passava por junto dela. Contavam-se
muitas histórias a respeito daquela janela, e os crédulos pescadores, não tendo
necessidade de examinar esse mistério, quando iam ao promontório procuravam
sempre afastar-se dela.
Ao clarão de uma luz baça, grande número de homens desconhecidos ali
estavam, e em linguagem ininteligível pareciam altercar uns com os outros. Cobertos
com mantos brancos, cada um tinha na mão uma espada reluzente. A débil
claridade do subterrâneo e o terror do rapaz lhe tolheram o divisar mais nada. Patrício
sentiu correr-lhe pelos membros um suor frio, quando David lhe veio dizer o que
vira, e fez o sinal-da-cruz.
- Santo Deus! São certamente
aqueles fidalgos franceses que vieram há anos ter a esta ilha, e que em certos dias
se ajuntam neste ou em outro sítio. Vamo-nos daqui embora não nos suceda
alguma! Ai de nós se percebem que os espreitámos. Um deles cegou Murray só
porque lhe disse algumas palavras pesadas. Anda! Vamo-nos embora.
Dito isto agarrou na mão a David, e o foi quase a rastos levando atrás
de si pelos fraguedos da serra. Os socos dos dois barqueiros ressoaram pelas
pedras, e a sombra de seus corpos se prolongava pelos penhascos, onde o luar de
chapa: foram sentidos!
O grito de alto lá! Que reboou por aquelas quebradas, os fez parar de
repente. Um homem vestido de branco e com a espada nua na mão se lhe pôs
diante: o seu ar era ameaçador. David se arrojou por terra, e Patrício,
aterrado, deitou para trás o capuz do felpudo gibão, e clamou com voz truncada:
- Perdão! Perdão! Eu não o sabia!
Foi o acaso e a tempestade quem me trouxe ao pé da ermida! - Que é lá isso,
irmão? – Perguntou outro, que saiu da porta da ermida, também vestido de
branco.
- Chove! Respondeu energicamente
o primeiro. – Tende mão nos profanos! Replicou o outro, recolhendo-se
apressadamente para dentro.
Não era necessário usar da força para executar esta ordem; já o terror
tinha tornado imóveis os dois miseráveis. Bem viam que o terrível estrangeiro
não gracejava com eles». In Alexandre Herculano, O Mestre Assassinado, Narrativa
Histórica Portuguesa, Antologia, Colecção Textos Esquecidos, Guimarães
Editores, Lisboa, 1992,
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