O Portugal contemporâneo de Júlio Conrado
«Júlio Conrado é um escritor realista. Estreou-se em 1963 com um livro
de contos, A Prova Real, a que se
seguiu seis anos depois novo livro de contos, Clarisse, Amargura, Dezembro, este com um prefácio de Urbano
Tavares Rodrigues, onde a dado passo se diz, “nos contos de Júlio Conrado
verifica-se impressionante aderência da realidade ficcionada a um exigente
programa neo-realista”, palavras escritas há quase quarenta anos mas que
permanecem verdadeiras e válidas se retirarmos da frase o pequeno prefixo de
três letras que por lá anda a mais.
É difícil saber o que seja hoje, na sociedade portuguesa do engenheiro
Sócrates, marcada pelo cliché da
eficiência social da modernização, um exigente programa neo-realista, mas com
toda a certeza sabemos o que é um escritor de tradição realista, com um
programa de anatomia social, interessado em documentar as mazelas sociais e
morais de grupos diferenciados, novas ou repetidas, para depois as denunciar,
pondo a descoberto, na imaginativa da ficção ou na linha do verso, aspectos
pouco conhecidos ou mesmo escondidos do tecido social e contribuindo assim para
um retrato mais nítido e veraz de uma particular realidade humana.
A literatura narrativa de Júlio Conrado apontou sempre, desde a sua
estreia, nesta direcção, primeiro numa vertente áspera e amarga que ia ao
encontro do tal programa de exigências neo-realistas de que falava Urbano em
1969, cuja natureza é uma argumentativa determinista do realismo, e depois numa
versão mais solta e livre, mas não menos áspera, com uma vetusta faceta
satírica e porventura caricatural, exuberante e hiperbólica em termos expressivos,
que não perde por isso fidelidade aos pressupostos da documentação social.
Este segundo e último modo do escritor tem coincidindo com o período
posterior à revolução dos cravos, servindo-lhe o livro Era a Revolução, 1977, onde se transita da sociedade do Estado Novo
para a da democracia representativa, de sobressaltada porta de entrada. Nesse livro,
que de resto teve uma bem sucedida fortuna crítica, sente-se passar um vento de
tempestade, furioso e revoluteante, que tanto vai como vem, derrubando no seu
alucinado caminho todos os obstáculos e abrindo com a sua força de intempérie
todas as portas e janelas, que assim se ouvem vibrar e bater, abertas que estão
ou ficam, apesar do estrondo, ao infinito de todas as possibilidades futuras.
O melhor realismo de Júlio Conrado, penso nos enredos de Maldito entre as Mulheres, 1999, ou De Mãos no Fogo, 2001, mas também nos
retratos paródicos de Desaparecido no
Salon du Livre, 2000, é pois aquele que apresenta debaixo do vestuário da
ficção, tecido em geral com uma trama azeda e grossa, pouco apiedada, a
sociedade portuguesa saída da revolução dos cravos, sobretudo aquela que foi
regulada ou normalizada pela entrada de Portugal na Europa, aí se destacando os
períodos cavaquista e guterrista, com os seus sucedâneos imediatos, mais pardos
ou mais vivos, de Barroso a Sócrates.
O livro de Júlio Conrado, Querido
Traficante, 2006, é um novo ponto nesta tentativa de traduzir em ficção o
Portugal contemporâneo. Convergem nele alguns dos mais recentes instrumentos
expressivos do autor, a sátira aguçada e o risco da caricatura, num traço
exagerado mas firme e reconhecível, e percebe-se no seu propósito o interesse
de alargar o volume da ficção anterior, multiplicando as medidas, de modo a que
o retrato seja mais largo e ambicioso, nele cabendo a diversidade forte das
camadas sociais representativas da actual sociedade portuguesa, isto é, Igreja,
Universidade, Governo, Moda, Edição, Trabalho.
A fotografia de grupo que daí se colhe é cruel. A sociedade portuguesa
contemporânea é uma sociedade retraída e triste, sem verdade e sem substância,
amedrontada e desprezível, com um clero, vicioso, uma classe política corrupta
e incompetente, um escol universitário básico e superficial, uma corporação de
escritores ambiciosos e intrujões, um jornalismo vendido e boçal, uma classe
trabalhadora desmoralizada e incapaz de se apresentar como alternativa social».
In
António Cândido Franco, Querido Traficante, O Portugal contemporâneo de Júlio
Conrado, Enfoques, Júlio Conrado, De Tempos a Tempos. Antologia pessoal. Antologia
crítica, Roma Editora.
continua
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