quarta-feira, 24 de outubro de 2012

São Paulo. Teixeira de Pascoaes. «A infância existe mais do que as crianças; e mais do que os velhos a velhice. O que existe é a infância, a mocidade e a velhice passando através de nós, como a aurora, o dia e a noite através, do mundo»


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«Acompanhemos o apóstolo, durante a sua existência. Os seus primeiros e últimos tempos são duas névoas, entre as quais medeia um espaço limpo. A infância de Paulo, como a de todos nós, decorreu nessa obscuridade em que germinam as sementes e a estrelas. Só conhecemos a semente, quando ela irrompe, em haste, para o sol; e a estrela quando se torna luminosa.
Paulo nasceu, em Tarso, capital da Cilícia, e renasceu, na estrada de Damasco. Ali, a sua pessoa tornou-se também incandescente. E os cristãos nasceram, em Agosto de 64, no circo de Nero, banhados em sangue, elevados ao rubro esplendoroso. Viu-se, de todo o mundo, pairar, no céu de Roma, aquela aurora vermelha.
Mas os primeiros anos do apóstolo, esconde-os a névoa da manhã. Quem notou a criança que foi S. Paulo, no meio das outras? Eram todas a mesma criança, a mesma infância a despontar em várias caras. A infância existe mais do que as crianças; e mais do que os velhos a velhice. O que existe é a infância, a mocidade e a velhice passando através de nós, como a aurora, o dia e a noite através, do mundo.
Paulo nasceu talvez, no ano 12. Seu avô, oriundo de Gischala (Galilea) pertencia à tribo de Beijamim e gozava de certa importância, na Cilícia. Recebera Pompeu, em sua casa, nos tempos áureos do aparatoso general, que lhe pagou a hospedagem, concedendo-lhe o título de cidadão romano, transmissível aos descendentes. Foi um salvo-conduto que Paulo teve, durante as suas viagens apostólicas. Livrou-o, algumas vezes, das bastonadas, e abriu-lhe as portas do cárcere. Foi o seu melhor cúmplice, na propaganda do Cristianismo. Era já César, o Anti-Cristo, a favor de Cristo, o doente a defender a sua doença, contra todos os Galenos; um dos casos em que aparece o Acaso, na História, com os sinais da Providência, duma entidade superior, urdindo, além das nuvens, a trama dos acontecimentos sublunares. Nos períodos criadores, percebe-se a intervenção duma força misteriosa.
O pequeno Saulo divagava, nas ruas de Tarso, animadas dos mais variados transeuntes: galatas, gregos, egípcios, romanos, fenícios e judeus; e certos personagens muito exóticos, de causar espanto nas crianças: alguns, nédios e fartos, duma gordura alegre e filosófica; outros, de túnica rapada, magros, a barba inculta e um ar de pedra no rosto. Eram os epicuristas e os estóicos, que expunham as suas doutrinas, em duas universidades muito célebres, duas seitas ou partidos, em perpétua luta. Os mais convictos, depois de violentas discussões sobre a natureza das coisas e dos deuses, sujavam as portas das casas dos adversários, imagine o leitor! Com excrementos! E agrediam-se à pancada. A alma apela para o corpo, quando se vê aflita; e serve-se dele, como dum argumento contundente e decisivo.
Estes heróis da Idea, tão pitorescos, destacavam-se na turba-malta das ruas, na vaga a desdobrar-se em mil fisionomias diferentes, mas expressivas da mesma sensualidade e egoísmo, os dois bichos fundamentais do homem.

A cidade, bem situada para o comércio, era muito populosa. Várias estradas a ligavam aos centros importantes da Ásia. Uma, a das caravanas de Roma, atravessava, por um estreito e fundo desfiladeiro (as célebres Portas Cilicianas), o Taurus, recortado em altos píncaros, sem um mugido nem um estremecimento no bronze dorso. O Taurus e a planície até ao mar... E, no meio da campina viridente, a bela Tarso, com os palácios, escolas, teatros, foruns e o seu deus tutelar, Sardanápalo; o deus da orgia, vestido de mulher. Lia-se, no seu pedestal, esta inscrição:
  • Bebe, come e goza. O resto não é nada.
Mas este deus impúdico embrandecia a dureza hostil do espírito judaico. Helenisava-o ou humanisava-o, como hoje se diria. E só os judeus helenisados aderiam ao Cristianismo. A corrupção favorece as ideias novas. Paulo crescia nesta atmosfera suja e literária, à sombra dum deus ignóbil, verdadeiro deus do pântano asiático. O seu corpo ressentiu-se, para lhe afinar a sensibilidade, já hereditariamente doentia. Por isso, as suas impressões se exageraram até ao Infinito, e se apropriaram do Infinito». In Teixeira de Pascoaes, São Paulo, editorial Minerva, Assírio & Alvim, Lisboa, 1984.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT