«Acompanhemos o apóstolo, durante a sua existência. Os seus primeiros e
últimos tempos são duas névoas, entre as quais medeia um espaço limpo. A
infância de Paulo, como a de todos nós, decorreu nessa obscuridade em que
germinam as sementes e a estrelas. Só conhecemos a semente, quando ela irrompe,
em haste, para o sol; e a estrela quando se torna luminosa.
Paulo nasceu, em Tarso, capital da Cilícia, e renasceu, na estrada de
Damasco. Ali, a sua pessoa tornou-se também incandescente. E os cristãos
nasceram, em Agosto de 64, no circo de Nero, banhados em sangue, elevados ao
rubro esplendoroso. Viu-se, de todo o mundo, pairar, no céu de Roma, aquela
aurora vermelha.
Mas os primeiros anos do apóstolo, esconde-os a névoa da manhã. Quem
notou a criança que foi S. Paulo, no meio das outras? Eram todas a mesma
criança, a mesma infância a despontar em várias caras. A infância existe mais
do que as crianças; e mais do que os velhos a velhice. O que existe é a infância,
a mocidade e a velhice passando através de nós, como a aurora, o dia e a noite
através, do mundo.
Paulo nasceu talvez, no ano 12. Seu avô, oriundo de Gischala (Galilea)
pertencia à tribo de Beijamim e gozava de certa importância, na Cilícia.
Recebera Pompeu, em sua casa, nos tempos áureos do aparatoso general, que lhe
pagou a hospedagem, concedendo-lhe o título de cidadão romano, transmissível
aos descendentes. Foi um salvo-conduto
que Paulo teve, durante as suas viagens apostólicas. Livrou-o, algumas vezes,
das bastonadas, e abriu-lhe as portas do cárcere. Foi o seu melhor cúmplice, na
propaganda do Cristianismo. Era já César, o Anti-Cristo, a favor de Cristo, o
doente a defender a sua doença, contra todos os Galenos; um dos casos em que
aparece o Acaso, na História, com os sinais da Providência, duma entidade superior,
urdindo, além das nuvens, a trama dos acontecimentos sublunares. Nos períodos
criadores, percebe-se a intervenção duma força misteriosa.
O pequeno Saulo divagava, nas ruas de Tarso, animadas dos mais variados
transeuntes: galatas, gregos, egípcios, romanos, fenícios e judeus; e certos
personagens muito exóticos, de causar espanto nas crianças: alguns, nédios e
fartos, duma gordura alegre e filosófica; outros, de túnica rapada, magros, a
barba inculta e um ar de pedra no rosto. Eram os epicuristas e os estóicos, que
expunham as suas doutrinas, em duas universidades muito célebres, duas seitas
ou partidos, em perpétua luta. Os mais convictos, depois de violentas
discussões sobre a natureza das coisas e dos deuses, sujavam as portas das
casas dos adversários, imagine o leitor! Com excrementos! E agrediam-se à
pancada. A alma apela para o corpo, quando se vê aflita; e serve-se dele, como
dum argumento contundente e decisivo.
Estes heróis da Idea, tão pitorescos, destacavam-se na turba-malta das ruas,
na vaga a desdobrar-se em mil fisionomias diferentes, mas expressivas da mesma
sensualidade e egoísmo, os dois bichos fundamentais do homem.
A cidade, bem situada para o comércio, era muito populosa. Várias estradas
a ligavam aos centros importantes da Ásia. Uma, a das caravanas de Roma,
atravessava, por um estreito e fundo desfiladeiro (as célebres Portas Cilicianas), o Taurus, recortado
em altos píncaros, sem um mugido nem um estremecimento no bronze dorso. O
Taurus e a planície até ao mar... E, no meio da campina viridente, a bela
Tarso, com os palácios, escolas, teatros, foruns e o seu deus tutelar, Sardanápalo;
o deus da orgia, vestido de mulher. Lia-se, no seu pedestal, esta inscrição:
- Bebe, come e goza. O resto não é nada.
Mas este deus impúdico embrandecia a dureza hostil do espírito judaico.
Helenisava-o ou humanisava-o, como hoje se diria. E só os judeus helenisados
aderiam ao Cristianismo. A corrupção favorece as ideias novas. Paulo crescia nesta atmosfera suja e literária, à sombra dum deus ignóbil,
verdadeiro deus do pântano asiático. O seu corpo ressentiu-se, para lhe afinar
a sensibilidade, já hereditariamente doentia. Por isso, as suas impressões se
exageraram até ao Infinito, e se apropriaram do Infinito». In Teixeira de
Pascoaes, São Paulo, editorial Minerva, Assírio & Alvim, Lisboa, 1984.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT