«No fim de Novembro, chegou à cidade o legado do papa para fazer a paz.
Vinha, como sempre vinham os enviados de Avinhão, mais pesado de distracções
que de intenções. Pedro negou o perdão aos sediciosos e recusou regressar para a
esposa, Branca de Borbom, que ao fim de três dias de casamento fora trocada por
Maria Padilha, a louca paixão deste reizinho de vinte anos. No princípio de
Dezembro, quando os mesteirais se começavam a alimentar das gamboas podres que
varejavam nos quintais, a torre que defendia a ponte romana de acesso à cidade
pelo rio caiu. No mês seguinte, quando se notava já o crescimento da vespertina
fímbria de luz dos dias, os homens-bons de Toro escusaram-se ao combate.
Depunham a ascuma e o escudo, cansados de privações e tementes da desforra dos
que estavam do lado de fora. Só tinham um apetite: voltar aos pacatos ofícios,
trazendo de novo à flor dos dias os tempos álacres das populosas assembleias
dos concelhos. Privados de peões e besteiros, os ricos-homens decidiram
entregar a cidade e refugiar-se com a rainha na alcáçova dos cimos da povoação.
Era o dia 25 de Janeiro e o rio tinha uma catadura ainda mais áspera e feia que
o costume. Os elementos são o espelho das humanais preocupações e mal deve
andar o mundo quando um homem morre sem que ao menos uma nuvem entristeça o
rosto do céu.
Nessa noite as discussões em torno da rainha ferveram. Em duas facções
se dividiu aquele punhado de poderosos cavaleiros.
- A primeira, defendendo a permanência na fortaleza e a continuação da resistência, era aguerrida mas arregimentava poucas vozes;
- a segunda, que defendia a entrega da cidadela no dia seguinte, falava receosa mas era numerosa.
Acreditavam os primeiros que a força do rei era menos viva que aparente
e que bastava apertá-lo nas cidades do centro para o seu poder voar de novo em
mil estilhas; contrapunham os segundos que Toledo caíra na Primavera e que o
derradeiro centro de resistência ao rei era o baluarte de Toro em que estavam
encerrados. Enquanto as discussões assim corriam na câmara alta dum dos cubelos
da cerca, subiam nas ruas, à luz dos archotes de estopim, os risos dos infanções
do rei que ocupavam a cidade e davam ordem de passagem aos peões e besteiros de
garrucha. Quando surgiram a Oriente os primeiros clarões da alvorada, os homens
de armas do rei alinhavam-se em boa ordem nos parapeitos do fosso, prontos para
assaltar as duas barbacãs, onde uma pequena escolta defendia a ponte que
erguida fechava a porta. Os intransigentes perceberam então que não lhes
restava muito mais que a prisão na inexpugnável torre de menagem. Haviam sido
embrulhados numa ratoeira.
- Canallas! Canallas! - gritou
então rabioso um deles, duma das seteiras do cubelo. Mas depressa fecharam a
cara, não mais se atrevendo a abrir a boca, nem para doestar os homens do rei
nem para segurar aquela frágil posição. Acordaram todos na desistência e na
entrega da cidadela ao rei. Fiavam-se na rainha-mãe e na protecção que o manto
de tão real personagem lhes podia oferecer.
Quando à hora de terça a ponte levadiça desceu e a porta do reduto se
abriu, começara a chover. A rainha vinha toda de preto, não pela viuvez, que
essa fora lesta a passar, indisposta que há muito andava com o marido, mas pela
derrota da rebelião, que consumira no alto braseiro das suas chamas o seu mais
próximo valido, o senhor de Albuquerque, e metera na prisão de Siguenza a
aliada que lhe valia, Branca de Borbom. Vinha tão doída que cobrira o branco
rosto com uma larga dobra do negro sudário que lhe envolvia a cabeça. Só se lhe
viam os olhos tristes de cinza a brilhar lacrimejantes por entre a escuridão do
pano. Atrás vinham os ricos-homens. Haviam despido a loriga e deixado de lado o
bacinete grosso de ferro. Da pesada armadura com que haviam saído a justar com
os cavaleiros do rei, restava apenas o braçal, sinal de que não tinham outro
ofício que lança e escudo. Sem espada nem bulhão, chegavam-se ao manto da
rainha, calados e abatidos. Esperavam assim mover o rei ao esquecimento da desobediência
em que folgavam desde o Verão de 1354. Queriam a boa árvore, que de choruda sombra
os cobrisse. Esqueciam porém que o raio fulminante quando desce sobre Terra
prefere a árvore protectora aos descampados nus dos ermos.
Quando a rainha deixou o túnel da segunda barbacã e se dispunha a transpor
debaixo de chuva a alameda que levava às vielas da cidade, encontrou pela frente
o filho envolvido num largo capeirão vermelho e montado num alto ginete baio.
Os seus olhos fuzilavam de fúria e o seu rosto branco de doninha, pontiagudo e
feroz, tremia. Tremer neste caso é o modo como os coléricos fogem da remissão.
O cavalo, incomodado talvez pelo aperto do caparazão, escarvava nervoso com os
cascos fortes as pedras do chão. O jovem escudeiro, que lhe estava à rédea,
procurava acalmá-lo com pequenos toques de freio, que é para o palafrém aquilo
que para o homem é o senso. O rei, esse, parecia comunicar à montada uma
descarga eléctrica, que era depois devolvida à terra em escarvas cada vez mais
rijas e inquietas. A rainha sem hesitação avançou e pediu, altiva e exigente,
aos pés do cavalo do filho.
- Sed piedoso, sed humano.
Com a pressa de falar, afastara o sudário, deixando ver o rosto ainda
atraente duma mulher de quarenta e dois anos. Fora decerto esplêndida como uma
gazela do deserto; agora, parecia tão-só enigmática e furtiva como uma mélroa
de plumagem lisa e brilhante, para falar daquilo que temos por perto». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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