«Sei que Pina o repete e se limitou a repetir o que lhe mandaram dizer,
mas a verdade é que El Rei era muito miúdo para requerer o que quer que fosse,
a Rainha não mais viu as filhas, ficando apenas com a jovem infanta D. Joana e
nunca lhe foram remetidos nem dinheiro, nem prendas de dote nem coisa alguma.
Claro que D. Leonor soube também que João II de Castela, naturalmente, nem viu
os embaixadores e, se os viu, o seu valido Álvaro de Luna é que os recebeu e
tratou dos negócios. Era homem de confiança do Regente Pedro e inimigo natural
dos Transtâmaras. A Rainha acabou a viver de esmolas, ao sobejo das sopas de
viúvas e fidalgas que a ampararam até que a morte a levou talvez com a ajuda de
Álvaro de Luna e a costumada ‘peçonha’.
Em Fevereiro do ano de 1441 as coisas complicavam-se em Portugal, pois
quase estalou a guerra entre o conde de Barcelos e o Regente. Os ânimos
acalmaram, à custa de muitas palavras e intenções dos amigos e familiares de
parte a parte, mas a oposição do Barcelos ao duque de Coimbra passou a ser
manifesta, sem subterfúgios. Foi o ano da chegada dos primeiros escravos negros
a Sagres e da morte do homem que pintara em 1428 o retrato da filha de João I,
antes do seu casamento com o duque de Borgonha.
Em Coimbra D. Isabel de Urgel certamente teria conhecimento do que se
passava com a cunhada. Não sei como reagiu, se a sua alma de mulher e mãe, mais
tarde também tão sacrificada, se condoeu. Talvez a mãe sim, embora D. Leonor
fosse quem tivesse abandonado os filhos...
Não sei mesmo, é uma hipótese a considerar, se o Infante Pedro teria
sido o grande responsável moral por essa atitude. Talvez não. Não pretendo
defendê-lo, nem ninguém, nem mais tarde o farei comigo próprio, mas é bem
possível que a sagaz perversidade do bastardo Afonso de Barcelos tivesse
insuflado na alma da cunhada, que era uma mulher limitada e estúpida, essa
hipótese. Também nunca a auxiliou depois. O que Afonso desejou nesse instante
foi o escândalo, a hipótese da guerra civil, a partilha do País em duas
facções, a nítida destruição dos projectos de poder do irmão. Mesmo mais tarde,
para, quem sabe? – aligeirar a consciência, fez ver ao sobrinho a crueldade de
Pedro para com a ‘pobre viúva e mãe d'El Rei’, não lhe explicou porque não
mexeu sequer uma palha para a auxiliar. Quanto à condessa de Urgel e duquesa
de Coimbra, que toda a vida se comportou com a dignidade de uma Rainha que,
efectivamente, poderia ter sido, o seu contacto com o jovem sobrinho Rei não
deve ter sido negativo. Depois de o destino se lhe manifestar tão avesso, como
aconteceu mais tarde, este nunca a perseguiu pessoalmente nem, pelos vistos,
permitiu aos Braganças um acto de crueldade gratuito. O facto de ela ser a
sogra não o justifica. Portanto, D. Isabel deve ter deixado no genro boas
recordações e, talvez, a memória do resquício de uma certa forma de amor
maternal que tão cedo lhe fora roubado pelos azares do destino e a inexorável
luta pelo poder.
Afonso de Barcelos, talvez porque o tivesse solicitado ao jovem
sobrinho Rei, ou porque o Regente lhe quis acalmar a ambição (de todos os
irmãos não conseguira ainda o título de duque), foi feito duque de Bragança em
1442, no mês de Maio. Em Outubro desse ano uma grande infelicidade acontece ao Regente
Pedro: perde o irmão querido, seu fiel apoiante, que o adorava como se de um
pai se tratasse, infante João, com quarenta e dois anos de idade, pois nascera
em 13 de Janeiro de 1400 e era o mais jovem filho de D. Filipa de Lencastre e
do Rei João.
O infante Pedro amava o irmão quase ferozmente. Homem de sentimentos fortes,
agarrado à família, ao lar, aos laços de sangue, educado na escola que a mãe
imprimira a uma Corte vinda dos desmandos dos reis Pedro e Fernando e após uma
guerra civil, o Regente via naquele irmão uma espécie de filho mais velho,
confidente e sucessor, a quem, inclusive, dera o lugar de condestável do Reino.
Fiel, honesto, directo, de rosto limpo e olhar claro, aquele irmão iria ser o
esteiro que lhe faltaria no momento próprio como, de resto, aconteceu. E
interessante notar que, apesar da amizade sempre existente, é a partir da morte
do irmão que Pedro se une mais ao Vaz de Almada, ao conde de Avranches.
O infante Pedro, tal como sucedera ao irmão Duarte I com a prisão e
infelicidade do infante Fernando, perde um pouco da sua alma quando sabe da morte,
em Alcácer do Sal, do irmão preferido. Cai doente à cama com um febrão que o ia
matando. Depois praticou um erro político: transferiu para o filho do falecido,
o jovem Diogo, o Mestrado de Santiago e Avis e as rendas do pai e, entre os restantes
cargos, depois, o de condestável. Ora o rapaz tinha apenas catorze anos. Era
demasiado jovem e inexperiente. Foi então que o conde de Ourém se opôs à
nomeação. Desejava o lugar. Achava-se com direito a ele. Em Janeiro do ano
seguinte à morte do infante João, o conde de Ourém entra, e tal como o pai já o
fizera, em guerra com o primo. O pai, sendo duque, vinculou o título à família
que era quase uma família real, rica, soberana». In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT