segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Bosco Deleitoso. Mosteiro de Alcobaça. «E quando tal poder é dado ao homem, deve sojugar o seu próprio desejo aa prol comunal e pera seu falante deve desamparar o ermo, em que aproveita e serve a si soo, e torna-se ao lugar u seja proveitoso ao mundo»


Cortesia de wikipedia

O Bosco Deleitoso, também Boosco Deleitoso em português medieval ou Bosque Deleitoso, é uma das obras místicas escritas no Mosteiro de Alcobaça entre os finais do século XIV e o início do século XV, na Idade Média, foi escrito por um monge anónimo do mosteiro de Alcobaça. É considerada uma das mais importantes obras espirituais da literatura portuguesa. O ‘bosque’ refere-se a um lugar de isolamento, contemplação e reflexão, de renúncia ao mundo e busca do sentido da vidaCerca de setenta capítulos transcrevem a tradução da obra de Petrarca De Vita Solitaria. Os últimos quarenta e seis capítulos são originais. O Bosco Deleitoso foi impresso em Lisboa em 1515.

Bosco Deleitoso. Terceira Parte. Capítulo XXX
Defesa da vida solitária
Quando o nobre solitário ermitam acabou estas razões suso ditas levantou-se logo üu velho honrado que i estava, vestido em maneira de doutor sagral mui honestamente, e em sua cabeça tiinha üa grilanda de louro seca e sem verdura; e começou sua razom mui apostamente contra aquelo que o nobre ermitam católico havia dito.
E disse enesta guisa:
 – Maior cousa é segundo natura receber e padecer mui grandes trabalhos e grandes nojos e tribulações por conservar e ajudar todas as gentes, se poder seer, que viver em o ermo vida apartada, posto que nom haja o homem nenhüus nojos nem tribulações em o ermo e que haja avondança de todos os viços e haja fremosura e forças do corpo. E por em qualquer homem de bõo entendimento e de bõo engenho grande avantagem dá a esta tal vida sobre a vida apartada.
Quando eu, pecador e fraco de coraçom, ouvi esto, contorvei-me já quanto, e preguntei quem era este doutor que assi falava ousadamente, e foi-me dito que era üu poeta filósofo que havia nome Ciceram, e porque fora gentil e nom fora católico, por em agrilanda que trazia, que perteence aos poetas, era seca.
E tanto que ele disse sua razom, logo o nobre solitário Dom Francisco respondeu e disse:
 – Dom Cicerom, eu outorgo o que vós dizes quando as causas assi som como havedes dito. Mas eu falo daqueles ocupados que nós veemos, dos quaes é chea a vida do poboo; mas dos outros taes como vós dizedes, nom há i nenhüus em o mundo; ou som tam poucos, que nom parecem em nenhüu lugar.
E eu bem sei que foram já em o mundo e per ventura som agora alguns barões mui ocupados e mui santos, que aduserom pera Jesu Cristo si meesmos e consigo as almas que andavam desviadas da carreira da salvaçom. E quando esto assi é, eu confesso que é mui grande bem que nom pode seer extimado nem apreçado, e é dobrada bem aventurança em contrairo daquela dobrez daquela mizquindade dos ocupados que vivem com outrem.
Qual é a cousa mais bem aventurada e mais dina em o homem ou mais semelhávil a Deus, que guardar ou ajudar muitos? E aquele que esto pode fazer e nom o faz, parece-me que enjeita e lança de si ofício mui nobre de humanidade. E quando tal poder é dado ao homem, deve sojugar o seu próprio desejo aa prol comunal e pera seu falante deve desamparar o ermo, em que aproveita e serve a si soo, e torna-se ao lugar u seja proveitoso ao mundo.

Mas destas cousas todas o meu juízo é este: certamente a doutrina e a ensinança geeral, que é verdadeira, nom se abala nem é movida nem quebrantada per mui poucas razões contrairas. Muitos som que prometem e razoam as ocupações proveitosas do comum e mais santas que qualquer vida apartada do ermo. Mas rogo-te que me digas quantos som aqueles que comprem aquelo que prometerom e razoavam. Som er ventura alguns ou som muitos? Mostra-me üu, e calar-m'-ei.
Eu nom nego que há em o mundo algüus barões ensinados e bem falantes e que desputam muito contra estas cousas; mas nom é a nossa questom sobre o engenho e a sotileza, mas sobre os costumes. Eles andam pelas cidades e pregam e razoam em as praças e falam muitas cousas das virtudes e dos pecados; e aadur pode achar üu que per obra cumprisse o que razoava». In Mosteiro de Alcobaça, Boosco Deleitoso, edição de Augusto Magne, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1950, Projecto Vercial, Leitura Gulbenkian.

Cortesia de Augusto Magne/JDACT