O Bosco
Deleitoso, também Boosco Deleitoso em português medieval ou Bosque
Deleitoso, é uma das obras místicas escritas no Mosteiro de Alcobaça entre
os finais do século XIV e o início do século XV, na Idade Média, foi escrito
por um monge anónimo do mosteiro de Alcobaça. É considerada uma das mais importantes
obras espirituais da literatura portuguesa. O ‘bosque’ refere-se a um lugar de
isolamento, contemplação e reflexão, de renúncia ao mundo e busca do sentido da
vidaCerca de setenta capítulos transcrevem a tradução da obra de Petrarca De
Vita Solitaria. Os últimos quarenta e seis capítulos são originais. O Bosco
Deleitoso foi impresso em Lisboa em 1515.
Bosco Deleitoso. Terceira Parte. Capítulo XXX
Defesa da vida solitária
Quando o nobre solitário ermitam acabou estas razões suso
ditas levantou-se logo üu velho honrado que i estava, vestido em maneira de
doutor sagral mui honestamente, e em sua cabeça tiinha üa grilanda de louro
seca e sem verdura; e começou sua razom mui apostamente contra aquelo que o
nobre ermitam católico havia dito.
E disse enesta guisa:
– Maior cousa é
segundo natura receber e padecer mui grandes trabalhos e grandes nojos e
tribulações por conservar e ajudar todas as gentes, se poder seer, que viver em
o ermo vida apartada, posto que nom haja o homem nenhüus nojos nem tribulações
em o ermo e que haja avondança de todos os viços e haja fremosura e forças do
corpo. E por em qualquer homem de bõo entendimento e de bõo engenho grande
avantagem dá a esta tal vida sobre a vida apartada.
Quando eu, pecador e fraco de coraçom, ouvi esto,
contorvei-me já quanto, e preguntei quem era este doutor que assi falava
ousadamente, e foi-me dito que era üu poeta filósofo que havia nome Ciceram, e
porque fora gentil e nom fora católico, por em agrilanda que trazia, que
perteence aos poetas, era seca.
E tanto que ele disse sua razom, logo o nobre solitário Dom
Francisco respondeu e disse:
– Dom Cicerom, eu outorgo o que vós dizes
quando as causas assi som como havedes dito. Mas eu falo daqueles ocupados que
nós veemos, dos quaes é chea a vida do poboo; mas dos outros taes como vós
dizedes, nom há i nenhüus em o mundo; ou som tam poucos, que nom parecem em
nenhüu lugar.
E eu bem sei que foram já em o
mundo e per ventura som agora alguns barões mui ocupados e mui santos, que
aduserom pera Jesu Cristo si meesmos e consigo as almas que andavam desviadas
da carreira da salvaçom. E quando esto assi é, eu confesso que é mui grande bem
que nom pode seer extimado nem apreçado, e é dobrada bem aventurança em
contrairo daquela dobrez daquela mizquindade dos ocupados que vivem com outrem.
Qual é a cousa mais bem
aventurada e mais dina em o homem ou mais semelhávil a Deus, que guardar ou
ajudar muitos? E aquele que esto pode fazer e nom o faz, parece-me que enjeita
e lança de si ofício mui nobre de humanidade. E quando tal poder é dado ao
homem, deve sojugar o seu próprio desejo aa prol comunal e pera seu falante
deve desamparar o ermo, em que aproveita e serve a si soo, e torna-se ao lugar
u seja proveitoso ao mundo.
Mas destas cousas todas o meu
juízo é este: certamente a doutrina e a ensinança geeral, que é verdadeira, nom
se abala nem é movida nem quebrantada per mui poucas razões contrairas. Muitos
som que prometem e razoam as ocupações proveitosas do comum e mais santas que
qualquer vida apartada do ermo. Mas rogo-te que me digas quantos som aqueles
que comprem aquelo que prometerom e razoavam. Som er ventura alguns ou som
muitos? Mostra-me üu, e calar-m'-ei.
Eu nom nego que há em o mundo
algüus barões ensinados e bem falantes e que desputam muito contra estas
cousas; mas nom é a nossa questom sobre o engenho e a sotileza, mas sobre os
costumes. Eles andam pelas cidades e pregam e razoam em as praças e falam muitas
cousas das virtudes e dos pecados; e aadur pode achar üu que per obra cumprisse
o que razoava». In Mosteiro de Alcobaça, Boosco
Deleitoso, edição de Augusto Magne, Rio de Janeiro, Instituto Nacional
do Livro, 1950, Projecto Vercial, Leitura Gulbenkian.
Cortesia de Augusto Magne/JDACT