(continuação)
«Mas a dúvida expressa no índice é novamente afirmada na epígrafe da
composição que se segue à écloga – Hüa carta do dito, onde se lê:
- Carta do mesmo estando preso q mãdou a hüa senhora cõ q era casado a furto cõtra võtade de seus parentes della, os quaes a queriã casar com outrem, sobre que fez (segundo paresce) a passada Egloga.
Quanto à Carta, atribuem-na
os editores, sem mais rodeios, a Cristóvão Falcão – ‘Hüa carta do dito Hos pretos
[sic] cõtam os dias. Mil años por cada dia’, diz o índice; ‘Carta do mesmo...’,
lê-se na epígrafe. Do mesmo modo, a história daquela senhora com quem era
casado a furto, etc., é-nos referida simplesmente, sem expressões ou palavras dubitativas.
Se, portanto, lermos com atenção o texto do editor de Ferrara, temos de
concluir que ele exprime nos seus dizeres duas coisas diferentes:
- em primeiro lugar, afirma um facto, uma certeza: que a Carta é da autoria de certo Cristóvão Falcão e foi motivada por certa história passada entre ele e certa dama;
- em segundo lugar, apresenta uma hipótese, dele ou de outrem: que esse mesmo Cristóvão Falcão será também o autor de certa écloga famosa – ‘mui nomeada e agradável’ - chamada Crisfal.
Note-se que o facto, a certeza, vai simplesmente afirmado, como se não
houvesse necessidade de o confirmar ou justificar. Com a hipótese dá-se o
contrário; vai acompanhada de uma das razões que a tornam provável: a
coincidência das sílabas iniciais do nome de Cristóvão Falcão com o criptónimo
Crisfal.
Que concluiremos? Que no pensamento do editor, a Carta é, com certeza, de Cristóvão Falcão; e a écloga pode não o
ser.
Sendo assim, impõe-se analisar o estilo e o conteúdo da Carta e compará-los seguidamente com o
estilo e o conteúdo do Crisfal. Eis o
que nunca se tentou.
Na Carta, chorosa e
melancólica, depois de descrever os males da prisão e da ausência, que não
dobram a persistência e a fidelidade do seu amor e que se tornam mais amargas
com as lembranças do bem passado, o Autor desfecha a interrogação obsidiante: ‘Porque
não respondeis às minhas cartas?’ ‘É possível que tenham mudado o vosso
querer e que tenhais trocado o meu amor pela riqueza de outrem?’
Mas que se lembre de que não há riquezas que valham este seu amor; e
ele confia, apesar de tudo, na fidelidade dela. E acaba, por fim, dizendo que
as lágrimas o ‘impediram poder pôr mais por escrito’ e sem se esquecer
de lhe pedir, ‘por galardão, três regras da vossa mão’.
Como se vê, uma verdadeira carta com um destino e uma aplicação
perfeitamente concretos: obter da destinatária uma resposta que assegure o Autor
da fidelidade dela. Artisticamente, ou poeticamente, o autor da Carta poderia ter feito uma de duas
coisas: ou filosofar sobre o seu próprio sofrimento e reflectir sobre o
mistério do amor, aprofundando o seu caso particular até penetrar no caso
geral, pela análise psicológica, como faz Bernardim Ribeiro em qualquer das
éclogas e trovas, como o fará Soror Mariana nas suas Cartas, ou exprimir a
angústia e a intensidade da sua paixão por meio do ritmo, em verso plangente,
repetindo o mesmo pensamento com monótona e obsidiante insistência, como Bernardim
no seu Memento, onde se repete a
mesma nota em todas as escalas e sempre ao mesmo compasso. Porém, como não era
poeta, ou, pelo menos, não escrevia como tal, o nosso autor apenas põe em rima
aquilo que teria dito em conversa familiar, rastejando sobre as realidades da
vida quotidiana: não dá às suas palavras nem filosofia nem arte.
Dialéctica amorosa, penetração psicológica, conceitos gerais, música,
ritmo, é escusado procurá-los aqui: o nosso autor só sabe exalar o seu queixume
da ausência, numa expansão primitiva, e, quanto a filosofia, só sabe dizer-nos
que ‘a vida é de uma hora e este bem será eterno’ e que ‘riqueza não tira
dor’. A adjectivação é pobríssima ‘olhos fermosos’ e ‘saudosos’ são um luxo;
imagens e metáforas (e veremos a importância que elas têm em Bernardim) quase
não as há; os próprios jogos de palavras e antíteses, sem os quais ninguém
nessa época fazia versos, são relativamente escassos: encontramos ao todo
quatro exemplos de jogos de palavras, isolados e despretensiosos, e uma
antítese. Em Bernardim sucedem-se como cadeias ininterruptas.
Vou exemplificar. Para dizer que o seu amor se manterá firme e
constante, apesar de a amada lho não merecer, o autor da Carta escreve estes versos:
E não vos diga ninguém
que o mal que me tendes feito
me faz ter outro respeito,
inda que fora rezão;
mas não quer o coração
pelo muito que vos quer;
e sempre isto há-de ser
em quanto eu vivo for.
Eis o mesmo tema tratado por Bernardim Ribeiro:
Lembre-vos quanta rezão
tive pera esquecer-vos;
e sempre meu coração,
quanto menos galardão,
tanto mais firme em querer-vos.
Lembre-vos que, sem mudar
o querer desta vontade,
me haveis sempre de lembrar
té de todo me acabar
vós e vossa saudade.
Memento, vv. 16-25.
continua
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
Cortesia de Gradiva/JDACT