domingo, 28 de outubro de 2012

Campos Matos. Eugénio Lisboa. Vário, intrépido e fecundo. Uma homenagem. «Por natural apelo dos amigos, que não por imposição sua, pois é dos que sabe ouvir, é ele por via de regra o centro polarizador da conversa. Condimenta-a com o seu proverbial humor, sublinhando as suas frases através da pronta e precisa citação…»

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Alguns relances sobre Eugénio Lisboa
«Como matéria que me era afim e onde navegava em águas familiares, pude apreciar mais consideradamente a inteligência crítica, justa, despreconceituada, discordante aqui e acolá, com que ele analisou e valorizou a importância desse grande pioneiro dos estudos pessoanos.
Um outro texto viria depois, num registo que o seu autor diria de ‘frívolo’, intitulado “A senhora Renal”, que é uma outra maneira aliciante, de graça e ternura, que ele tem de nos prender a atenção e de nos ensinar a amar a literatura como um entretenimento supremo. Agora era a heroína de Sthendhal que, numa peça de puro divertimento, ele proporcionava à nossa companhia. E mais não direi da “Senhora Renal”, para não tirar o prazer que decerto terá, com a leitura desse texto, quem não o conhece ainda.
António Sérgio, Gaspar Simões, Régio (o Régio crítico de Eça), Camilo, o Eça d’Os Maias (e não só), Machado de Assis, Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço, Sthendhal, Gide, Martin du Gard, Montherland e tantas outras figuras do meu apreço, constituem matéria do culto literário de Eugénio Lisboa. Para empregar uma expressão coloquial muito queiroziana, ficamos desde então “calhados” depois daquele almoço a três. Com uma memória invejável e uma extensão de leitura sem fim, é um prazer sentarmo-nos à mesa com Eugénio Lisboa, para falar de autores, leituras, acontecimentos, episódios de literatura, e também de ‘misérias literárias’ que como Antero dizia, são as piores de todas as misérias, exercício que em recente tertúlia prandial se prolongou da 1 às 6 da tarde, quando, juntamente com outros convivas, já se hesitava se não se deveria ficar para jantar...

Por natural apelo dos amigos, que não por imposição sua, pois é dos que sabe ouvir, é ele por via de regra o centro polarizador da conversa. Condimenta-a com o seu proverbial humor, sublinhando as suas frases através da pronta e precisa citação de conhecidas eminências da cultura universal, a que ele recorre com a facilidade de quem tem na sua biblioteca, certamente, uma boa dúzia de antologias de ‘Quips & Quotes’, descobertas nas melhores livrarias de Londres. Recordo ainda o dia em que fui ao município de Aveiro, onde me desloquei para ajudar a resolver o enredado e vergonhoso caso da reabilitação do solar de Verdemilho onde Eça passou a infância. Havia que convocar também o Pedro Calheiros, do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade e foi-me dado ver então o Eugénio assomar à porta de uma aula, em mangas de camisa, brandindo um papel, e fiquei a pensar nas pérolas de clarificação hábil, pensante e penetrante, que ele devia oferecer aos seus alunos de literatura, em acção pedagógica que faz parte também da sua vocação.
Mas nem sempre é de rosas e de gargalhadas o convívio com esta alma crítica tão firme, tão preparada de literatura e também de ciência. Um sector hipercrítico dos seus dotes, numa tertúlia, num colóquio, numa conversa, pode subitamente eclodir e disparar, com intransigente convicção, e fulminar-nos. Recordo Tormes, e um colóquio queiroziano, em 2007, na Fundação Eça de Queiroz, em que nos engalfinhámos, com muito ardor e muito alarido, já não sei bem por que dissídio acerca de uma crítica de José Régio à ficção queiroziana. E eis que no ruído da discussão, já esgotados todos os argumentos, me preparava para lançar ao Eugénio uma derradeira fecha, acerada e retumbante: a afirmação dele próprio, decerto muito sólida e fundamentada, de que Régio, preocupado com a sua própria obra, como grande autor, tinha pouco tempo para ler. Isto confirmava o meu sentimento de que o romancista d’A Velha Casa não lera Eça tão integralmente, tão em profundidade, como lera o “seu Camilo”. Mas o adiantado da hora e as intransigências do moderador, fizeram-me aliviar o arco e recolher o dardo à aljava...
Logo de seguida, no intervalo para o café, ao pleno ar das serras e da eira de Tormes, já o Eugénio me invocava com displicência e humor uma daquelas apropriadas quotations com que costuma brindar a nossa atenção desvelada e já eu descoroçoado esquecia o meu dardo e o meu argumento... E assim este temperamento crítico, tão convicto de razões, tão de crítica, e de paixões, temperado. O Luís Amaro, ao peso de três quartos de século de literatura, acertava deveras ao dizer-me gravemente e com voz cava: “é necessário conhecê-lo...”». In Campos Matos, Eugénio Lisboa: Vário, intrépido e fecundo. Uma homenagem, organização de Otília P. Martins e Onésio T. Almeida, Opera Omnia, 2011, ISBN 978-989-8309-20-4.

Cortesia de Opera Omnia/JDACT