Alguns relances sobre Eugénio Lisboa
«Como matéria que me era afim e onde navegava em águas familiares, pude
apreciar mais consideradamente a inteligência crítica, justa, despreconceituada,
discordante aqui e acolá, com que ele analisou e valorizou a importância desse
grande pioneiro dos estudos pessoanos.
Um outro texto viria depois, num registo que o seu autor diria de ‘frívolo’,
intitulado “A senhora Renal”, que é uma outra maneira aliciante, de graça e
ternura, que ele tem de nos prender a atenção e de nos ensinar a amar a
literatura como um entretenimento supremo. Agora era a heroína de Sthendhal
que, numa peça de puro divertimento, ele proporcionava à nossa companhia. E
mais não direi da “Senhora Renal”, para não tirar o prazer que decerto terá,
com a leitura desse texto, quem não o conhece ainda.
António Sérgio, Gaspar Simões, Régio (o Régio crítico de Eça), Camilo,
o Eça d’Os Maias (e não só), Machado de Assis, Fernando Pessoa, Eduardo
Lourenço, Sthendhal, Gide, Martin du Gard, Montherland e tantas outras figuras
do meu apreço, constituem matéria do culto literário de Eugénio Lisboa. Para
empregar uma expressão coloquial muito queiroziana, ficamos desde então “calhados”
depois daquele almoço a três. Com uma memória invejável e uma extensão de
leitura sem fim, é um prazer sentarmo-nos à mesa com Eugénio Lisboa, para falar
de autores, leituras, acontecimentos, episódios de literatura, e também de ‘misérias
literárias’ que como Antero dizia, são as piores de todas as misérias, exercício
que em recente tertúlia prandial se prolongou da 1 às 6 da tarde, quando,
juntamente com outros convivas, já se hesitava se não se deveria ficar para jantar...
Por natural apelo dos amigos, que não por imposição sua, pois é dos que
sabe ouvir, é ele por via de regra o centro polarizador da conversa.
Condimenta-a com o seu proverbial humor, sublinhando as suas frases através da
pronta e precisa citação de conhecidas eminências da cultura universal, a que
ele recorre com a facilidade de quem tem na sua biblioteca, certamente, uma boa
dúzia de antologias de ‘Quips & Quotes’, descobertas nas melhores livrarias
de Londres. Recordo ainda o dia em que fui ao município de Aveiro, onde me
desloquei para ajudar a resolver o enredado e vergonhoso caso da reabilitação
do solar de Verdemilho onde Eça passou a infância. Havia que convocar também o
Pedro Calheiros, do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade e foi-me
dado ver então o Eugénio assomar à porta de uma aula, em mangas de camisa,
brandindo um papel, e fiquei a pensar nas pérolas de clarificação hábil,
pensante e penetrante, que ele devia oferecer aos seus alunos de literatura, em
acção pedagógica que faz parte também da sua vocação.
Mas nem sempre é de rosas e de gargalhadas o convívio com esta alma
crítica tão firme, tão preparada de literatura e também de ciência. Um sector
hipercrítico dos seus dotes, numa tertúlia, num colóquio, numa conversa, pode
subitamente eclodir e disparar, com intransigente convicção, e fulminar-nos.
Recordo Tormes, e um colóquio queiroziano, em 2007, na Fundação Eça de Queiroz,
em que nos engalfinhámos, com muito ardor e muito alarido, já não sei bem por
que dissídio acerca de uma crítica de José Régio à ficção queiroziana. E eis
que no ruído da discussão, já esgotados todos os argumentos, me preparava para
lançar ao Eugénio uma derradeira fecha, acerada e retumbante: a afirmação dele
próprio, decerto muito sólida e fundamentada, de que Régio, preocupado com a
sua própria obra, como grande autor, tinha pouco tempo para ler. Isto
confirmava o meu sentimento de que o romancista d’A Velha Casa não lera Eça tão
integralmente, tão em profundidade, como lera o “seu Camilo”. Mas o adiantado
da hora e as intransigências do moderador, fizeram-me aliviar o arco e recolher
o dardo à aljava...
Logo de seguida, no intervalo para o café, ao pleno ar das serras e da
eira de Tormes, já o Eugénio me invocava com displicência e humor uma daquelas
apropriadas quotations com que
costuma brindar a nossa atenção desvelada e já eu descoroçoado esquecia o meu
dardo e o meu argumento... E assim este temperamento crítico, tão convicto de
razões, tão de crítica, e de paixões, temperado. O Luís Amaro, ao peso de três
quartos de século de literatura, acertava deveras ao dizer-me gravemente e com
voz cava: “é necessário conhecê-lo...”».
In
Campos Matos, Eugénio Lisboa: Vário, intrépido e fecundo. Uma homenagem,
organização de Otília P. Martins e Onésio T. Almeida, Opera Omnia, 2011, ISBN
978-989-8309-20-4.
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