segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Poesia. Fernanda de Castro. «Saudade não é dor nem amargura, dilui-se ao longe a derradeira festa. Não me tentam as rotas da aventura, agora sei que a minha estrada é esta: difícil de subir, áspera e dura, mas branca a urze, de oiro puro a giesta»

jdact e cortesia de wikipedia

Quem pudera Cecília
Tenho fome de campo e de verdura,
de terra bem lavrada,
e sede, muita sede de água pura.

Quero pegar no cabo de uma enxada,

quero cheirar os troncos e as raízes,
pisar, descalça, a terra ainda molhada,
ver, nas noites, o rasto das perdizes.

Já Cecília Meireles o dizia,
com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”
E ria, ria,
rasgando as mãos nas silvas,
comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.

Tinhas razão, Cecília.
Em Portugal, as estações são festas,
são festas de família,
enfiadas, colares de alegrias;
na Primavera as flores;
os frutos no Verão, e as romarias;
no Outono o vinho novo e o ritual
profano das vindimas.
No Inverno,
a mística alegria do Natal,
as portas bem fechadas,
a lenha a crepitar
e as rabanadas.

Quem pudera, Cecília, quem pudera,
mandar-te para lá, para onde estás,
mm raminho da nossa Primavera.


Alma Serena
Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida que me resta.
Saudade não é dor nem amargura,
dilui-se ao longe a derradeira festa.

Não me tentam as rotas da aventura,
agora sei que a minha estrada é esta:
difícil de subir, áspera e dura,
mas branca a urze, de oiro puro a giesta.

Assim meu canto fácil de entender,
como chuva a cair, planta a nascer,
como raiz na terra, água corrente.

Tão fácil o difícil verso obscuro!
Eu não canto, porém, atrás dum muro,
eu canto ao sol e para toda a gente.

Poemas de Fernanda de Castro, ‘in "Ronda das Horas Lentas"

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