Nota proemial
«A Saudade é o tema de toda a obra literária, poética e filosófica de
Teixeira de Pascoaes, e parece-nos objectivamente razoável aduzir que Pascoaes
escreveu um único livro da Saudade, em que os vários livros, poéticos,
ensaísticos e polémicos, constituem quais diferentes capítulos desse livro
único.
A “Saudade” atinge no pensamento poético e filosófico de Pascoaes
o clímax de uma enteléquia, de um autómato incorporal. Esse clímax é, porém, o
termo de uma penosa e sofrida ascese, que transita desde a simples aletéia
inicial para a complexa metaforidade que o poeta lhe imprimiu, através de uma
constante, repetida, e dedicada, elaboração formal. A Saudade é, antes de
Pascoaes, um recurso sentimental da poesia lírica; é, depois do poeta, a
essência da ‘alma portuguesa’, a revelação total desta alma. O rigor lógico
pode aduzir que o saudosismo constitui mais um conjunto de inferências
intuitivas do pensamento de Pascoaes do que um sistema de aduções e de deduções,
em que um possível metafísico se evidencie qual princípio irrecusável. Todavia,
Saudade
e saudosismo acham-se como elaboradas construções no pensamento escrito de
Pascoaes, que deu ao corpo saudoso uma linguagem, uma natureza, uma forma, uma
essência, uma existência, uma carga ideológica, uma fundamentação etnológica e,
sem dúvida, uma razão de finalidade, pois que a Saudade é também, no
saudosismo, causa final, garante de um finalismo lusitano. Discutível em muitas
instâncias, a potencialidade energética do saudosismo reside também na sua
discutibilidade, porque, não sendo dogma, se nos propõe qual tópico de controvérsia
filosófica, a Saudade formula-se, na doutrina pascoalina, como um sistema de cosmologia,
de antropologia e de teologia. Pascoaes apresenta-nos, eis o que é indubitável,
uma teoria do mundo, uma visão do homem e uma inteligência do ser teótico.
Corpo de filosofia, elaborado através de uma penetração poética, eis o
saudosismo. Ele não se acha revelado e dado de uma vez por todas à inteligência
contemplante do poeta. Os primeiros artigos mais aludem do que proferem a
palavra. O poema ‘Marános’, 1911, é
já uma teologia saudosista, mas o discurso lógico, necessário pilar de toda a
construção epistemológica, tornar-se-á progressivamente necessário a Pascoaes.
O percurso é sensível, ele nasce de uma evidente tensão doutrinal interna à
‘Renascença Portuguesa’. Pascoaes foi encarregado de redigir o primeiro ‘Manifesto’,
que de facto redigiu, mas que não mereceu aprovação, uma vez considerada a
redução do projecto renascentista a um núcleo que surgia imerso em subjectiva
leitura, a Saudade. O grupo fundador da ‘Renascença Portuguesa’, reunido em
Lisboa (17 de Setembro de 1911), cometeu a Raul Proença a elaboração,de um
Manifesto menos metafísico e mais atento às tarefas imediatas requeridas pela
salvaguarda da República.
Raul Proença não só redige esse segundo Manifesto, como, nele, subtilmente
põe em causa o que, no primeiro Manifesto surgia, ou como remoto, ou como
longínquo, ou como palavra que lança turvação nas decisões activas. A
dificuldade de um acordo quanto a um valor principal não inibe Pascoaes da
continuidade.
O artigo ‘Renascença’, com que abre o primeiro número da segunda série
da revista A Águia, unicamente
assinado pelo poeta, é um Manifesto, mas, nele, além de propor ao país um
projecto de vida, Pascoaes deixa clara a sua discordância relativamente às posições
dos membros de Lisboa que integravam o grupo fundador do movimento. Ele afirma,
contra uma tendência viva na própria ‘Renascença’, o primado da Saudade
como causa primeira e causa última do movimento renascentista. Os seguintes e
sucessivos artigos que Pascoaes insere n’A
Águia são de carácter manifestativo: repete o primado da Saudade,
elabora uma doutrina, suscitada por necessidade de resposta às objecções de Proença
e de Sérgio, e faz com que o saudosismo seja cada vez mais determinante no
doutrinário de A Águia». In Teixeira
de Pascoaes, A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos), Compilação,
introdução, fixação do texto e notas de Pinharanga Gomes, Assírio & Alvim,
1988.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT