domingo, 30 de setembro de 2018

A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847). José Brissos. «… o seu natural é o reservado, austero, e secco, além d’isso é muito meditador, e suspeitozo, e (…) falava ou auctorizava em com seu nome, fugia, e emigrava»

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A Montagem de uma Conspiração. Debates de Comando e Direcção
«(…) Na prática isto significava uma suspensão dos trabalhos preparatórios, o que não deixou de causar alguma perplexidade na J.N., até porque tais diligências não estavam substancialmente adiantadas. A J.N. acabou por decidir que temporariamente os trabalhos não tomacem huma maior latitude. Deve dizer-se que este abrandamento de ritmo ia, de alguma forma, ao encontro da postura habitual dos notáveis miguelistas de Lisboa, que sempre tinham insistido na necessidade de aguardar pelo momento oportuno. Esta atitude de confortável distância cautelar, quase esquecia que uma conjuntura favorável só podia, realmente, ser aproveitada se o dispositivo de acção tivesse sido preparado com a devida antecedência. Em oposição a este cenário paralisante de fidelidades distintas mas inactivas, sobressaía o incansável Vilar de Perdizes que, em nome da J.N. e em diligências particulares, procurava estabelecer e consolidar a base de opperaçoens para a conspiração miguelista. Ou seja, de acordo com a auctoridade, e direcção de Ribeiro Saraiva, não cessava a sua intensa rede de contactos pessoais destinada a agregar influências e empenhamentos.
Além disso, a composição da J.N. obrigava a que os contactos externos fossem responsabilidade de Pereira Coutinho. Com efeito, nem José Lencastre, nem João Castelo Branco eram especialmente vocacionados para essas actividades, o que não quer dizet que estivessem inactivos. Ao primeiro não falta determinação e fé, na causa de dom Miguel, mas manifesta uma notória dificuldade no diálogo com o mundo novo. A sua postura de algum isolamento, definida pela sua educação, não contém as virtualidades da diplomacia e diálogo tão necessárias para que a audiência nas novas gerações seja possível. Quanto ao segundo, João Castelo Branco, a par do seu entusiasmo crescente na Restauração, a sua grande vantagem política era permitir o estabelecimento de um elo de contacto com o conde de Barbacena. Apesar de tudo, o funcionamento da J.N., nas suas reuniões mais ou menos regulares, permitia fazer um balanço das condições em que se inscrevia a preparação do movimento e estabelecer os critérios de actuação imediata.
A J.N. apresentava mesmo uma notória coesão interna, não isenta de formalidades, só que não podia ultrapassar os limites pessoais e sociológicos que marcavam o meio miguelista da capital. Daí, por vezes, algumas quebras de sincronia com as directrizes emanadas por António Ribeiro Saraiva. Não é uma questão de desobediência, mas a força das realidades, nem sempre ao alcance do agente de dom Miguel ern Londres:

No empenho de regularizar os seus trabalhos julgam os membros da J, (JN) indispensável dizer a V, Exa quais são as verdadeilas circonstancias em que se acham. A J: não tem á sua dispozição os meyos de fazer comprir ordens, e assim não pode aceitar a responsabilidade de as receber porque isso emportaria a obrigação a comprimento do impraticavel, e em taes circonstancias entende só ser possível, o accordo, a combinação, e conceito, que nace da harmonia e zello do Serviço, porque tambem são estes os unicos recursos de que se pode dispôr.

A posição externa de Ribeiro Saraiva, apesar dos seus diligentes correspondentes, não lhe permitia, por vezes, uma actuação adequada às circunstâncias em que se moviam os esforços da Restauração. Era o caso das suas correspondências de combate que enviava para diversas figuras políticas liberais e realistas. A polémica, por vezes, tornava-se pública sem que daí adviessem benefícios para a causa. No caso dos realistas, combatia tenazmente os que se tinham ligado ao sistema. Estas polémicas pessoalizadas dificultavam os esforços da JN, e reforçavam a desconfiança do conde de Barbacena e de outros notáveis de Lisboa em relação ao centro de Londres. Porém, não eram apenas as graves razões de divergência táctica ou doutrinária que estavam na base dessas reservas. Influem poderosamente questões de prestígio e de precedência, relacionadas com a ambiguidade existente na direcção dos miguelistas, o eterno problema das legitimidades paralelas sancionadas por Miguel. Vilar de Perdizes não tem dúvidas a este respeito:

[...] alem da natural vaidade e espirito sempre o mesmo, d’esta gente não ha para comnosco maes, que o terem medo ou receio de que lhe fassarnos sombra.

A montagem da conspiração miguelista não pode deixar de ser afectada por estas clivagens entre os seus fautores potenciais. O comportamento do chefe miguelista de Lisboa, em face dos preparativos para o movimento de Restauração, acaba por revelar-se algo paradoxal; não se quer envolver directamente, mas não deixa de revelar ressentimentos quando se supõe subalternizado:

A [conde de Barbacena] não quer que se falle em seu nome, e só e detras a cortina é quem dá empulço, mas muito a coberto, entendendo-se com 12 [ João Castelo Branco], o seu natural é o reservado, austero, e secco, além d’isso é muito meditador, e suspeitozo, e se elle tivesse o menor vislumbre de notticia de que se falava ou auctorizava em com seu nome, fugia, e emigrava».

In José Brissos, A Insurreição Miguelista nas Resistências a Costa Cabral (1842-1847), Faculdades de Letras de Lisboa, Edições Colibri, 1997, ISBN 972-8288-80-8.

Cortesia de Colibri/JDACT

Um Intelectual na Política. Mário Pinto Andrade. «… diria o quanto sinto a sua falta e quanto o amo acima de todas as coisas e como tento diariamente não me tornar prisioneira do meu passado embora isso se reflicta profundamente na essência do meu ser»

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Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) A osmose estabelece-se entre os escritores que ficaram em Angola e os que, estando a estudar em Portugal, como Agostinho Neto, se voltam para a miséria e as inquietações dos seus povos.
O Centro de Estudos Africanos, crisol de discussões e de confrontações culturais, tinha sido criado em Lisboa em 1952, por iniciativa do Agostinho Neto, do Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC. (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), de Francisco José Tenreiro e do autor deste texto.

A Voz dos Afectos. Carta sobre Mário de Andrade
(Henda Ducados Pinto Andrade)
Durante a maior parte da minha infância e adolescência Mário esteve ausente. O interessante da questão é que me fui acostumando desde muito cedo às suas constantes ausências. Ele ia e vinha o tempo todo, coisa que era normal para nós. Contudo, sempre que Sarah viajava, lembro-me de ter muitas saudades dela que ia ao quarto dela cheirar as suas roupas e chorava e chorava.
Ter saudades do Mário por outro lado era diferente e não tão doloroso porque sabíamos que as suas ausências tinham um propósito. Muito cedo tive que aprender a escrever de maneira a poder comunicar-me com ele onde quer que ele estivesse. O escrever e receber cartas dele até aos seus últimos dias, foi o que de mais bonito me poderia ter acontecido. O papel era belo e requintado assim como as palavras nele escritas. As suas cartas eram cheias de recomendações relativas à obtenção de um bom método de trabalho bem como a metodologias de investigação. Ele estava sempre preocupado acerca do meu pobre desempenho como estudante bem como ao meu fraco engajamento relativamente aos meus estudos assim como as minhas leituras. Esta preocupação sua serviu-me para mais tarde ultrapassar as minhas limitações. Interessante nisto é que o conteúdo complexo das cartas era o mesmo quer quando eu tinha 10 anos quer quando tinha 20 anos.
O que mais me surpreendia, e ainda continua a surpreender-me acerca dele, é que o Mário era extremamente organizado com tudo. Ele tinha regras que gostava de seguir em qualquer lado do mundo em que estivesse e ouvir noticiários era uma delas, que penso que ele teria adquirido quando muito jovem. O noticiário das 8 era qualquer coisa de obrigatório, e toda a casa deveria manter-se em silêncio vendo o noticiário da televisão. Ele dizia sempre que nos devíamos manter informados e paralelamente sabermos as origens das palavras pelo que tive que dedicar mais tempo (aos meus pobres conhecimentos de latim) para alcançar o sentido verdadeiro das palavras. Prendre un bol d’air por volta das seis era crucial para ele, deveríamos dar um passeio a essa hora para reflectir e respirar. Durante o passeio ele falava e eu ouvia sem no entanto prestar muita atenção. Durante muitos anos, eu ressenti-me do facto do Mário não fazer o que os outros pais faziam tal como levar-me à escola ou à piscina. De facto, Mário nunca esteve presente nos acontecimentos mais marcantes da minha vida, tal como cerimónia de fim dos estudos liceais.
Se o Mrário pudesse ouvir-me hoje, eu dir-lhe-ia que não restaram ressentimentos por não ter estado presente nos acontecimentos, aparentemente mais importantes dessa altura da minha vida porque eu ainda continuo a ver o noticiário das oito. Continuo a apreciar palavras bonitas escritas em papel requintado e, agora que ele partiu, gostaria muito que tivéssemos tido uma conversa em que lhe diria o quanto sinto a sua falta e quanto o amo acima de todas as coisas e como tento diariamente não me tornar prisioneira do meu passado embora isso se reflicta profundamente na essência do meu ser». In Mário Pinto Andrade, Um Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.

Cortesia de Colibri/JDACT

Um Intelectual na Política. Mário Pinto Andrade. «Mas os jovens intelectuais organizam-se e inscrevem-se alvoroçadamente nas associações regionalistas que levavam, e levam ainda, uma actividade de carácter reformista»

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Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) Face ao combate conduzido pelas autoridades portuguesas que, pelo primeiro quarto deste século, acabava a pacificação militar da colónia, jornalistas e homens de letras angolanos opunham uma resistência ao obscurantismo e à violência, por uma verdadeira campanha de imprensa. Os jornalistas que se ergueram contra as arbitrariedades da administração colonial, a qual procedia à expropriação sistemática das terras e dos bens das massas ditas indígenas, são os precursores da literatura nacionalista em Angola. A polémica e o ensaio eram os únicos géneros praticados pelas gerações do começo do século. Entre as figuras mais notórias devem evocar-se os nomes de Tadeu Bastos, Silvério Ferreira, Paixão Franco ou o cónego Pereira Nascimento. As novas gerações do pós-guerra vão, pois, alimentar-se destes exemplos. No decurso da sua procura de afirmação de um nacionalismo cultural, elas procedem à revalorização das obras destes precursores e reclamam-se da sua mensagem.
Aqui, a maturação da consciência nacional depende, Por um lado, da identificação com as figuras históricas da resistência e, por outro, da captação do real africano. Na busca de uma via autêntica para a criação literária, os jovens intelectuais lançam-se a estudar o desenvolvimento da cultura africana no Novo Mundo e em particular no Brasil. Vejo três razões para isso:

Em primeiro lugar, o laço histórico que une Angola ao Brasil através do importante tráfico de escravos capturados nas costas angolanas; depois, e como consequência deste laço histórico, a existência de um cultural pattern, devedor da contribuição desta parte de África; finalmente, esta larga abertura ao mundo que o Brasil permitia devido à livre expressão das ideias neste país.

Trata-se aí de um verdadeiro movimento de retorno da cultura brasileira a uma destas origens africanas. Um estudo aprofundado sobre o aspecto formal do conto e da poesia da jovem geração angolana revelaria o lugar importante ocupado pelo Brasil. Portanto, entre 1925 e o pós-guerra poucas obras são de lançar ao crédito da literatura angolana, salvo um romance de costumes Segredo da Morta, de António Assis Jr., publicado em Luanda em 1935. É apenas em 1948 que os jovens intelectuais, repensando, à medida das novas circunstâncias, o exemplo das gerações precedentes, fundam em Luanda um movimento cultural que adopta como palavra de ordem um apelo nacionalista Vamos descobrir Angola. Deste esforço de pensamento vão nascer o conto e a poesia angolanos. À volta de Viriato Cruz, que empreende um verdadeiro inquérito à vida das populações indígenas e sabe reproduzir de forma feliz a linguagem popular na sua poesia, outras vocações literárias manifestam-se. A poesia de Viriato Cruz inaugura a corrente nacionalista moderna, moldada por vezes, numa forma regional.
No momento em que ele aparece na cena literária, dois poetas de transição, Bessa Victor e Maurício Gomes, encontravam-se prisioneiros das velhas formas da poesia portuguesa e distanciados das aspirações populares, enquanto Óscar Ribas prosseguia o seu trabalho de fixação dos aspectos nitidamente folclóricos da vida angolana pelo romance e pelo conto e Castro Soromenho desmistificava já, nas suas obras, o comportamento pseudo-humanista do colonizador português em Angola.
Mas os jovens intelectuais organizam-se e inscrevem-se alvoroçadamente nas associações regionalistas que levavam, e levam ainda, uma actividade de carácter reformista. Logo de entrada, escolhem as tarefas mais directamente ligadas à elevação do nível das massas populares, como a campanha contra o analfabetismo. Pelo ardor nacionalista que põem nas suas actividades constituem um perigo para a administração colonial. Vários deles vêem-se expulsos dessas associações, não sem terem criado antes revistas culturais, como Mensagem, que data de 1951, assim como o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Depois foi a febre dos clubes literários. Poetas negros e brancos nascidos na colónia exaltam o nascimento de uma nova consciência ligada à terra, procuram um equilíbrio da linguagem, enriquecem a língua de dominação, dão à expressão do canto popular uma feição nova e introduzem, enfim, na sua mensagem um conteúdo social. Desenvolve-se uma literatura de emancipação nacional e social». In Mário Pinto Andrade, Um Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.

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sábado, 29 de setembro de 2018

Um Intelectual na Política. Mário Pinto Andrade. «Todas as formas de criação literária procedentes desta região ficaram no estado oral e mantidas numa espécie de clandestinidade tribal»

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Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) É evidente que as condições gerais da existência que foi imposta ao escritor nos países africanos sob dominação portuguesa explicam o estado actual de desenvolvimento da literatura nesses países e a ignorância do público internacional acerca do seu lugar no património cultural da África Negra. Isto tem a ver, em primeiro lugar, com as consequências de um sistema colonial particularmente opressor. Com efeito, uma estrutura social do tipo colonial não poderia de maneira nenhuma suscitar o desenvolvimento da cultura. Não é apenas uma classe que na situação colonial dispõe à vontade dos meios de produção espiritual, mas toda a sociedade dominante. Já se notou o suficiente como o colonizador manobra para reduzir os colonizados a simples consumidores da cultura dele, colonizador.
A política de assimilação espiritual praticada pelos portugueses é baseada num critério de superioridade cultural, porque se integra no quadro de uma ideologia colonial. Alguns, como o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, afirmam que os países tropicais colocados outrora ou actualmente sob a dominação de Portugal e sob a direcção do cristianismo (Brasil, África, Índia, Madeira, Açores) constituem ainda hoje uma unidade de sentimento e de cultura. A operação desta unidade seria, em sua opinião, um resultado lógico dos métodos e das condições da colonização portuguesa, da cordialidade e da simpatia características do povo português, o mais cristão dos colonizadores modernos nas suas relações com as pessoas ditas inferiores. O Português, pelos seus contactos com os árabes, possuiria uma aptidão hereditária para viver sob o sol dos trópicos e uma predisposição para as aventuras sexuais com as mulheres de cor, sob o signo da Vénus morena...
Freyre admite desde aí uma originalidade, uma forma de aptidão biológica e social do português, civilizador dos trópicos. Se por esta doutrina do luso-tropicalismo se devesse entender, como quer o sociólogo brasileiro, uma civilização e uma cultura próprias a todos os países tropicais de língua portuguesa teria sido preciso verificar em todas essas áreas formas de produção espiritual comuns a umas e outras. Ora não é nada assim. Não há tradições comuns vividas de uma maneira autêntica entre tal camponês de Angola e tal outro da província do Alentejo, entre o moçambicano e o brasileiro. Aliás, a percentagem de analfabetismo entre as populações negras da Guiné, de Angola e de Moçambique (99%) invalida a existência de uma civilização luso-tropical veiculada pela língua portuguesa.
No caso português, a assimilação é sempre traduzida praticamente por uma desestruturação dos quadros negro-africanos e a criação de uma elite quantitativamente reduzida. Ela apresenta-se como a receita mágica que conduziria o indígena das trevas da ignorância até à luz do saber. Uma forma de passagem do não-ser ao ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana. Também os intelectuais dos países sob a dominação portuguesa se esforçaram por enfrentar e resolver correctamente o problema gerado pela assimilação: rejeição definitiva do substratum negro-africano? Diluição na cultura dominante? Aceitação da pseudo-condição de mestiço cultural?
Paralelamente a estas interrogações, e por vezes confundidos com elas, delineiam-se os gestos e as atitudes fundamentais que vão conduzir os intelectuais angolanos ao aprofundamento da sua própria consciência nacional. Os escritores que decidem rejeitar o estilo literário aprendido na escola portuguesa vão ajudar, através das suas obras, a cristalizar nos países o sentimento de independência nacional. Este esforço exercer-se-á primeiro sobre um meio restrito, o meio urbano, mas o povo entenderá os seus ecos. Em Angola como em Moçambique exerce-se uma das pressões coloniais mais fortes sobre todas as tentativas de afirmação cultural e particularmente literária dos criadores africanos. Assim, as culturas africanas, em geral bantas, nunca puderam encontrar um quadro para a fixação completa e o desenvolvimento de uma literatura escrita moderna. Todas as formas de criação literária procedentes desta região ficaram no estado oral e mantidas numa espécie de clandestinidade tribal.
À medida que os cidadãos saídos da comunidades africanas se elevavam até à tomada de consciência cultural, pelo jogo de uma administração que deixava alguns lugares vagos aos negros nos estabelecimentos escolares da colónia, eles exprimiam-se em português. Isso não impediu que em Angola espíritos clarividentes como Cordeiro Matta avaliassem a contribuição das culturas bantas e empreendessem a fixação da sua língua materna. Foi Cordeiro Matta quem, no fim do século XIX, estabeleceu o primeiro dicionário quimbundo-português e quem, além dos seus ensaios de análise histórica de conto e de poesia, realizou uma obra consequente no domínio do folclore angolano». In Mário Pinto Andrade, Um Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.

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As Lutas Estudantis Contra a Ditadura Militar. 1926-1932. Cristina Faria. «Acresce a tudo isto o desempenho da administração da dupla governativa Filomeno Câmara / Morais Sarmento, respectivamente alto-comissário e inspector da Administração Pública naquela colónia»

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Enquadramento Político, Económico e Social da Ditadura Militar
«(…) Preparada por Joaquim Nunes Mexia (grande latifundiário alentejano e ministro da Agricultura de I8/4 a 7/7/1929) e lançada pelo então ministro da tutela, Henrique Linhares Lima (8/7/29 – 21/1/30), tinha como principais objectivos apoiar a actividade da grande agricultura alentejana e promover o aumento da produção até, às necessidades da procura, por substituição de importações, dignificando a indústria agrícola como a mais nobre e a mais importante de todas as indústrias e como primeiro factor de prosperidade económica da Nação. O aumento da área de trigo cultivada, o desenvolvimento da indústria química, pela difusão dos adubos industriais, e, a reboque, o notável crescimento da produção, concluem o êxito (inicial) da campanha. Perto do final do ano, quando a Nação adquiriu já a plena consciência do seu estado e manifesta a vontade firme de seguir os caminhos do seu destino, Salazar, na ausência do Presidente do Ministério (em visita oficial a Espanha), consagra o princípio Nada contra a Nação, tudo pela Nação e, em nome da realidade nacional, apela ao desconhecimento das facções, dos partidos, dos grupos, quando os sectores oposicionistas da sociedade se limitam a contestar o fraco empenho demonstrado pela Ditadura nas comemorações do 5 de Outubro de 1910. Lopes Fonseca, mentor da manifestação dos municípios, tinha chegado à pasta da Justiça e dos Cultos por intermédio de Salazar e, tal como este, via em Ivens Ferraz o principal adversário na luta pelo poder no interior da Ditadura (a realização desta manifestação mereceu o comentário de Ivens Ferraz nas suas Memórias; durante a minha ausência passava-se em Portugal um incidente a que não posso deixar de me referir (...), porque, propositadamente, se procurou o afastamento do Chefe do Governo para tirar todos os efeitos políticos que daquele incidente poderiam resultar). Acusado de buscar uma aproximação aos partidos quando o momento exige um governo forte para que a Ditadura leve o barco a bom porto (designadamente, consolidar o equilíbrio do orçamento, realizar a reforma da moeda e completar a restauração financeira, lançar as bases decisivas da reconstrução económica da metrópole e das colónias (...) efectuar a reconstrução política e social do país, pelo regime municipal e corporativo (...) e pela preparação de condições que permitam e garantam a independência e harmonia dos poderes do Estado), Ivens Ferraz chega a apresentar a demissão. Mas será a polémica travada entre Salazar e Cunha Leal, o verdadeiro móbil da queda do seu ministério quando, a propósito das críticas tecidas por este à política financeira delineada para as colónias, o ministro das Finanças exige que o problema seja levado a Conselho de Ministros. Mais uma vez Carmona apoia-lo-á deixando cair o ministério de Ivens Ferraz.
Com o afastamento da presidência do Governo de Vicente Freitas, primeiro, e de Ivens Ferraz agora o republicanismo conservador perde o combate que a corrente salazarista vinha movendo no interior da Ditadura desde finais de 1928 e inaugura, com a constituição do Ministério presidido por Domingos Oliveira logo em 21 de Janeiro de 1930, uma ordem nova, quer do ponto de vista político-institucional quer do ponto de vista económico e social. Em conformidade com esta nova ordem, Salazar, interino das Colónias desde aquela data, demite Cunha Leal do cargo de governador do Banco de Angola e faz aprovar a sua estratégia nesta área de reforço do programa de obras públicas, apoio financeiro limitado, reforma do sistema bancário do império, e promulgação do Acto Colonial, a qual, pelo seu carácter nacionalista e civilizador, reduz o impacte das acusações de que Salazar não se importa com o Império.
Em Outubro de 1929, o crash da bolsa de Nova Iorque potenciara o aprofundamento da crise económica que se vinha avolumando desde o imediato pós-guerra na generalidade dos países do mundo. Em Portugal, embora refreados por factores de ordem estrutural e conjuntural, os seus efeitos vão fazer-se sentir com particular acuidade entre os sectores exportadores metropolitanos e coloniais. Na verdade, a quebra brutal das cotações mundiais dos principais produtos coloniais é a responsável pela redução das fontes de receitas dos circuitos de exportação e comercialização e, no Imperio (sobretudo em Angola), pela crescente tensão que a dependência da economia angolana relativamente à metropolitana cria nos sectores mais visados pela Grande Depressão, visivelmente afectados pela quase paralisação das transferências financeiras. Acresce a tudo isto o desempenho da administração da dupla governativa Filomeno Câmara / Morais Sarmento, respectivamente alto-comissário e inspector da Administração Pública naquela colónia: administrativa e financeiramente atrabiliária e descontrolada responde, em grande medida, pelos acontecimentos revoltosos que de 20 de Março a l0 de Abril se sucedem em Angola, cujo comando recai no Chefe do Estado Maior das Forças Armadas da colónia, coronel Genipro Cunha Eça Almeida. O tenente Morais Sarmento é morto no primeiro dia, Filomeno Câmara é exonerado em 10 de Abril quando, na metrópole, o governo de Domingos Oliveira, na pessoa do ministro interino das Colónias, Oliveira Salazar, (...) é obrigado a ceder às pressões da colónia (...)» In Cristina Faria, As Lutas Estudantis Contra a Ditadura Militar, 1926-1932, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-201-6.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

As Lutas Estudantis Contra a Ditadura Militar. 1926-1932. Cristina Faria. «A Ditadura era, pois, o garante da ordem e do equilíbrio. Reposta a disciplina nas ruas, acautelado o equilíbrio orçamental e desarticulada a oposição republicana democrática»

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Enquadramento Político, Económico e Social da Ditadura Militar
«(…) No campo oposicionista, porém, a dinâmica conspirativa mantém-se. Depois de solucionadas as divergências entre os comités militares e os linguistas e exilados no exterior acerca dos caminhos a seguir para derrubar a Ditadura, a revolução sai à rua no dia 20 de Julho por iniciativa do Batalhão de Caçadores 7, com o objectivo de pôr fim à degradante situação financeira e às soluções austeras preconizadas por Salazar e capitalizar, a seu favor, a agitação vivida nos três centros universitários do país e a situação de numerosos militares e civis. Paralelamente, o recente fiasco do pedido de empréstimo à SDN, o apoio inequívoco da Igreja, da Inglaterra e da Espanha à manutenção da Ditadura, a eleição de Carmona e a afinação dos métodos repressivos e policiais terão levado muitos a optar pela revolução. Uma revolução que, contudo, sai vencida à partida: ensaiada desde Maio, o processo de preparação que a antecedeu é desarticulado em inícios de Junho quando os seus principais organizadores (comandante Jaime Morais e capitães Chaves e César Almeida) são presos. Com ramificações a nível nacional, dura 12 horas na capital, salda-se em numerosos danos materiais e na prisão e deportação (Angola e Timor) de centenas de militares e civis (a grande componente do movimento) e potencia apoios à situação por constituir mais um forte impedimento à recuperação económica e financeira. Salazar, esse, continua a sua ditadura financeira e, em Setembro, reduz as despesas nos Ministérios da Guerra, do Comércio e das Comunicações e da Instrução Pública.
A Ditadura era, pois, o garante da ordem e do equilíbrio. Reposta a disciplina nas ruas, acautelado o equilíbrio orçamental e desarticulada a oposição republicana democrática, Salazar introduz um factor de confiança para os agentes económicos numa economia em que as políticas orçamentais (tendem) a dar prevalência à estabilidade sobre o crescimento económico e em que os saldos orçamentais passam a ser positivos a partir de 1928 - 1929: logo no início do ano, procede à liquidação de importantes prestações da dívida de guerra e da dívida flutuante, conquistando o reconhecimento internacional; reforma a Caixa Geral de Depósitos e o Banco de Portugal, lançando o crédito público às actividades económicas; anuncia medidas de reactivação das obras públicas (expansão da rede ferroviária e telefónica, aproveitamento hidroeléctrico dos rios Douro e Zêzere, programa de obras de hidráulica agrícola, infra-estruturas portuárias e viárias, etc.); em Junho faz aprovar o Orçamento para 1929 - 1930 com um saldo positivo de 8500 contos e anuncia ao país a extinção da dívida flutuante externa quedando-se saldadas as contas com o estrangeiro. Paralelamente, instaura a reforma tributária e desenvolve um rigoroso saneamento nas administrações coloniais, sobretudo em Angola. A Ditadura possui finalmente um projecto uno e coerente, com prioridades definidas e rumos certos, cujo conteúdo político se traduz na concertação de uma plataforma económico-social e política comum (síntese histórica das direitas portuguesas numa única direita) viabilizadora da crescente hegemonização da Ditadura Militar pela corrente salazarista.
Mas, na sequência da portaria de Junho de Mário Figueiredo, amigo de Salazar em Viseu e Coimbra e então tutelar da pasta da Justiça e dos Cultos (10/11/28 – 8/7/29), a questão religiosa precipita a demissão de ambos os católicos em sinal de protesto contra a revogação da portaria dos sinos pelo Conselho de Ministros do Governo de Vicente Freitas. Depois de reunir com Salazar, Carmona aceita o seu pedido de demissão formalizado em nome de todo o gabinete, e chama Ivens Ferraz para formar novo governo (8/7/1929 - 21/1/1930).
O êxito da prática financeira reconfirma Salazar na pasta das Finanças que prossegue, agora, uma estratégia de redução da oposição entre os sectores mais visados pelas dificuldades do momento. Por um lado, autoriza medidas de protecção à agricultura, sobretudo no Centro e Sul do país, e, em finais de Agosto, faz aprovar as bases para a organização da Campanha do Trigo». In Cristina Faria, As Lutas Estudantis Contra a Ditadura Militar, 1926-1932, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-201-6.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial. Gisela Medina Guevara. «Aproveitando o sentimento antibritânico tão vivo em Portugal depois do Ultimatum, a Alemanha lançava a sua ofensiva de penetração dos seus produtos no mercado português»

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O interesse alemão no Atlântico português
«(…) Bülow demonstrava uma certa preocupação que o Governo alemão fosse criticado quanto à sua política inglesa, depois das negociações em torno das ilhas de Samoa (na primavera de 1899 surgiu um desentendimento entre a Alemanha e a Grã-Bretanha em torno das ilhas Samoa que afectou muito as relações diplomáticas entre as duas potências) e no contexto de simpatia que os Boers suscitavam na opinião pública alemã, durante o conflito sul-africano. Interessante parece ser o facto de que, paralelamente à questão da divisão das colónias portuguesas, decorriam as negociações anglo-alemãs sobre Marrocos. Precisamente a 20 de Janeiro de 1901, o Kaiser alemão, de viagem a Londres por motivo da enfermidade da sua avó, a rainha Vitória (que morre a 21 de Janeiro), referia, num telegrama a Bülow, que Chamberlain, por intermédio do barão de Eckardstein, teria demonstrado grande interesse num entendimento sobre Marrocos. Já referimos atrás que, com grande probabilidade, a questão marroquina e a de Portugal fariam parte do mesmo projecto alemão, fracassado, em parte, pela contra-acção de Salisbury aos esforços de Chamberlain de entender-se com a Alemanha. Chamberlain via num acordo anglo-alemão sobre Marrocos, o primeiro passo para uma futura aliança com a Alemanha. A política externa inglesa revelava aliás, nesta época, uma grande ambiguidade, ao querer conciliar a aliança com Portugal e o Acordo secreto Anglo-Alemão sobre as Colónias Portuguesas. Mas a hegemonia naval britânica era preocupação prioritária do Governo inglês, sendo assim impossível um acordo com uma nação, como a Alemanha, que visava pôr em jogo essa hegemonia.
Neste período histórico, dominava na Europa a ideia de que o poder naval fazia parte integral da ideia imperial. Tirpitz, o responsável pela grande política naval alemã, referia já em 1894:

A marinha nunca me pareceu um fim em si mesmo mas sempre função dos seus interesses marítimos. Sem poder naval, a posição da Alemanha no mundo é semelhante à de um molusco sem concha.

Em relação com o poder naval estava a ideia de que os interesses económicos, nomeadamente o comércio, só poderiam ser bem defendidos com o desenvolvimento naval. Os dirigentes políticos alemães defendiam a ideia de que a Alemanha só poderia competir comercialmente com a Inglaterra se houvesse uma frota naval forte. Sem esta, a Alemanha não poderia dar o suficiente apoio às carreiras marítimas comerciais. A rivalidade comercial alemã começou a ser temida desde cedo na Grã Bretanha. Já em 1896, o famoso livro de Edwin Williams, Made in Germany, salientava a concorrência alemã. Muitos eram já os que, nos meios industriais ingleses, eram a favor de um retorno à protecção aduaneira. Tanto mais que os mais sérios adversários dos britânicos eram países proteccionistas como os E.U.A, a França e a Alemanha. O próprio Joseph Chamberlain defendia a preferência imperial, em que os países membros do Império britânico concederiam uns aos outros vantagens comerciais em forma de reduções das tarifas alfandegárias. Por outro lado, em 1897, o Governo inglês tinha denunciado o antigo tratado comercial de 1865 com a então Zollverein. Segundo este tratado, as exportações alemãs para as colónias inglesas não pagavam tarifas mais altas do que as inglesas para as suas colónias. A denúncia deste tratado tinha a ver com a nova política chamberliana da preferência imperial. Tal estimulou ainda mais a rivalidade comercial anglo-alemã. Em 1897, num artigo do Saturday review afirmava-se:

(...) na Europa há duas grandes forças irreconciliáveis, duas grandes nações que fariam do mundo, no seu todo, uma sua província e que imporiam nesta o tributo do comércio. A Inglaterra (...) e a Alemanha (...) competem em cada canto do globo.

Do lado alemão, havia também uma reacção a esta rivalidade, nomeadamente da Sociedade Colonial Germânica e da Liga Pangermânica. Esta rivalidade comercial que se juntava à rivalidade naval e colonial, e com elas estava relacionada, fazia-se sentir também em Portugal. Aproveitando o sentimento antibritânico tão vivo em Portugal depois do Ultimatum, a Alemanha lançava a sua ofensiva de penetração dos seus produtos no mercado português». In Gisela Medina Guevara, As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial, A Questão da Concessão dos Sanatórios da ilha da Madeira, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1997, ISBN 972-8288-70-0.

Cortesia Colibri/JDACT

As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial. Gisela Medina Guevara. «As recentes demonstrações (das relações) anglo-portuguesas são utilizadas na Alemanha contra a política do Governo alemão…»

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O interesse alemão no Atlântico português
«(…) A política externa portuguesa tende, a partir de 1901, a aproximar-se de novo da Inglaterra, assente desta vez na defesa do atlântico português. Em 1901, o rei português, Carlos I, fazia uma visita formal à Madeira e aos Açores, revelando o quanto as ilhas atlânticas passavam a significar para a Coroa portuguesa, já que essa visita se fazia acompanhar de uma grande parte da Marinha nacional. Esta visita era, aliás, atentamente observada pela Marinha alemã, que tinha as ilhas continuamente vigiadas. Num relatório da Marinha germânica, de Outubro de 1901, relata-se que a visita do rei à ilha da Madeira reforçara, na população e no governador da Madeira, o sentimento de segurança, numa época tão conturbada da história do País, em que a propaganda republicana antimonárquica obtinha já os seus frutos:

(...) O cruzador Adamastor foi então posto à disposição do governador civil da Madeira, o qual visitou em terra e por mar as povoações da Madeira e as ilhas adjacentes para promover no povo uma disposição pró-governamental. Esta acção deve ter aliviado o governador, já que a visita à Madeira de Sua Majestade o rei de Portugal, em Julho deste ano, muito fortalecera e entusiasmara o sentimento monárquico e pró-governamental.

Tudo o que dissesse respeito às ilhas atlânticas interessava muito aos Alemães, já que, em 1901, a Alemanha, assim como os E.U.A., pediam ao Governo português a concessão de depósitos de carvão nestas, o que levava a Inglaterra a reagir e a solicitar ao Governo português a confirmação das garantias de que nenhuma outra potência teria possibilidade de aí constituir depósitos de carvão. A visita do rei às ilhas tinha o intuito de reassegurar a soberania da Coroa portuguesa sobre estas, na conjunctura da rivalidade anglo-alemã e no contexto interno de agitação republicana contra a Monarquia.
A Marinha alemã observava atentamente, não só as ilhas atlânticas como a capital do País, Lisboa. É com desagrado que os Alemães vêem, em Dezembro de 1900, a esquadra britânica, a Channel Fleet, visitar Lisboa. Trata-se, na realidade, de um primeiro sinal de reconciliação anglo-lusa depois do Ultimatum. De facto, as relações diplomáticas entre os dois países tendiam a melhorar, sendo a aliança anglo-lusa já renovada em 1899, na Declaração de Windsor, reafirmada por Carlos I, em 1900, aquando de um banquete em honra da vinda da esquadra inglesa. O que parece preocupar o rei é, entre outros, a segurança do espaço marítimo português no quadro da rivalidade anglo-alemã e a manutenção do território colonial, o que refere MacDonell:

Em todo o caso pode supôr-se com segurança que, à parte de outra consideração política e da pressão a que é sujeito o rei, o objectivo do Governo português em desejar que viesse a público o reafirmar de antigos compromissos de tratados entre os dois países, foi de salvaguardar a integridade das possessões portuguesas na Africa do sul oriental (...).

O receio português de perder as colónias suplanta, temporariamente, o enraizado sentimento antibritânico. Do lado alemão, surgiam apreensões face a esta aproximação luso-inglesa e receava-se que o Tratado secreto Anglo-Alemão sobre as Colónias Portuguesas não fosse cumprido, como revela uma carta do marquês de Lansdowne ao visconde Gough:

(...) o barão de Eckardstein (depois de uma curta activiclade em Madrid, entrou, em 1891, para a Embaixada alemã em Londres. Em 1898, participou nas negociações sobre as colónias portuguesas e, em 1899, nas sobre as ilhas de Samoa. Desde 1899, foi secretário da missão diplomática alemã em Londres, tendo participado activamente nas negociações anglo-alemãs de 1900-1901. Nestas, procedeu, aliás, contra instruções dadas, dando origem a alguma confusão nas conversações então tidas com os ingleses. Durante a primeira crise de Marrocos esforçou-se para que a Alemanha chegasse a um entendimento com a França. Morreu em Haia, em 1933) chamou-me hoje e perguntou-me se o Governo alemão teria a liberdade de dizer que as demonstrações recentes em Lisboa não afectavam de forma nenhuma o Acordo secreto entre este país e a Alemanha assim como o das possessões portuguesas na África do Sul (...)

A esta sondagem Lansdowne respondia a Eckardstein que nada mudara no Acordo Anglo-Alemão. Apesar do Governo inglês assegurar, repetidas vezes, ao barão de Eckardstein e ao conde de Hatzfeldt que nada mudara quanto ao Acordo secreto, mesmo se a esquadra inglesa visitara Lisboa a 8 de Dezembro, a verdade é que, em Berlim, os homens políticos se inquietavam, como reflecte o telegrama de Bülow a Hatzfeldt:

As recentes demonstrações (das relações) anglo-portuguesas são utilizadas na Alemanha contra a política do Governo alemão, como sendo um sintoma de que a Inglaterra renuncia ao nosso acordo sul--africano.

In Gisela Medina Guevara, As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial, A Questão da Concessão dos Sanatórios da ilha da Madeira, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1997, ISBN 972-8288-70-0.

Cortesia Colibri/JDACT

As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial. Gisela Medina Guevara. «Berlim estava já em 1914 em contacto directo, por telegrafia sem fios, com o Togo, onde haviam construído a importante estação emissora de Camina»

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O interesse alemão no Atlântico português
«(…) Na realidade, já no Inverno de 1897 - 1898, os meios navais americanos tinham estudado a hipótese de uma manobra de diversão da frota dos E.U.A. em águas espanholas, próximo de Cádiz e das Canárias, para pressionar a Espanha a desistir de defender os seus interesses nas águas das Caraíbas. Com o desastre de 1898, circularam boatos de todo o tipo, difundidos pela imprensa e opinião pública, sobre um eventual arrendamento das ilhas Baleares e das Canárias. O aviso britânico era entendido pelo Governo português, que acedia em Dezembro de 1898, a troco de contrapartidas respeitantes nomeadamente à salvaguarda da independência do país em retirar os rendimentos das ilhas adjacentes das garantias a um crédito externo. A partir de 1898, os Britânicos não deixaram de preocupar-se em pedir garantias aos sucessivos governos portugueses, para que não fosse concedido a mais nenhuma outra potência facilidades nas ilhas atlânticas. Essas garantias transformar-se-ão mais tarde, com a intensificação da corrida naval anglo-alemã, no pedido de direito exclusivo, por parte britânica, de constituição de depósitos de carvão, telégrafos e cabos submarinos.
Os Açores, a Madeira, as Canárias e a costa marroquina detinham uma posição estratégica no controlo das rotas do atlântico e do mediterrâneo e a Inglaterra, potência marítima tradicional, não pretendia de forma nenhuma que principalmente a Alemanha, que lhe começava a disputar a hegemonia naval, obtivesse influência nestes pontos. Por isso, lord Salisbury informa o conde de Hatzfeldt que a Inglaterra vê com grande aversão qualquer facilidade concedida pelo Governo português que venha a colocar as ilhas atlânticas portuguesas sob a influência de uma terceira potência. Hatzfeldt não teria, no entanto, reagido bem à informação de Salisbury. Em Novembro de 1899, sir H. MacDonellao, escrevendo a Salisbury, revelava-lhe as suas apreensões sobre a corrente de hostilidade anti-inglesa em Portugal, tanto na opinião pública, como na classe política:

No meu n.º 77 do dia 8 deste mês queixei-me do tom violento da imprensa portuguesa a respeito da campanha da África. (...) O mal-estar causado no país pelos acontecimentos de 1891 deixou um sentimento de hostilidade que o republicano e a imprensa réptil aproveitaram a seu favor, em todas as ocasiões. Enquanto as classes intelectual e política partilham, no íntimo, a antipatia do homem do povo. (...). Tudo isto não escapou à atenção do meu colega alemão, que imbuído das suas simpatias pessoais pelos Boers assim como incentivado pelo seu governo, tem estado activo em criticar e distorcer os acontecimentos na África do Sul contra nós. A noção geralmente aceite de que o imperador Guilherme pode ter decidido apoiar mais eficazmente os Boers influenciou claramente as opiniões deste governo e foi sem dúvida um poderoso factor para orientar a opinião pública e a representada pela imprensa.

MacDonell revelava bem como a corrente anti-inglesa em Portugal era aproveitada, a nível interno, pelos republicanos, para fazerem propaganda antimonárquica e a nível externo, pelos Alemães, para influenciar o Governo Português. Mas a velha aliança luso-inglesa, que fora renovada secretamente na Declaração de Windsor de 1899 (esta declaração anglo-lusa deveu muito aos esforços do marquês de Soveral e à influência do rei Carlos I), seria reafirmada em 1901. Os ingleses necessitavam da neutralidade colaborante portuguesa na Guerra da África do Sul e a continuação da sua influência nas ilhas atlânticas, Açores e Madeira. Para isso aceitavam assegurar ao Governo português que o Império Colonial não seria dividido. Era de importância vital para os Britânicos, que o Governo português reafirmasse ao Governo britânico as garantias sobre as ilhas atlânticas, para impedir que os Alemães obtivessem bases navais no espaço atlântico.
Esta política era acompanhada, do lado inglês, sobretudo da parte de Salisbury, por uma recusa em ceder portos na costa marroquina atlântica. Salisbury evitara, como já vimos, comprometer-se com qualquer promessa nesta questão, apesar dos repetidos pedidos alemães nesse sentido. Note-se que é o mesmo Salisbury que estará por detrás do fracasso de um empréstimo alemão a Portugal, aconselhando Soveral a entender-se antes com os credores franceses na questão da dívida portuguesa. Um outro factor importante que fazia com que as ilhas atlânticas portuguesas se revestissem de grande valor para os Ingleses era, a contribuição que estas poderiam dar no estabelecimento de um sistema de comunicações por cabos submarinos. A partir de 1870, os Britânicos visavam criar um sistema internacional de cabos submarinos que lhes iria dar vantagens estratégicas e económicas imprescindíveis, e de que pretendiam ter o monopólio. Como não podiam confiar muito na rede de comunicação pelo Mediterrâneo, que não dominavam, era-lhes indispensável a construção de linhas atlânticas. Por isso, em 1901, estabeleceram uma linha de comunicação de cabos para a África do Sul que passava pela Madeira, São Vicente (Cabo Verde), Ascensão, Sta. Helena e Cabo. Como linha suplementar, assentaram outra que partia da Madeira para as colónias inglesas da África ocidental, Gambia, Serra Leoa, Costa do Ouro, Nigéria até à África do Sul. Assim, nesta rede de comunicação, a ilha da Madeira desempenhava um papel de destaque. Os Alemães tentaram quebrar o monopólio britânico sobre os cabos submarinos mas este manteve-se até 1914. Com a invenção da telegrafia sem fios esperavam libertar-se da dependência face ao sistema britânico. Berlim estava já em 1914 em contacto directo, por telegrafia sem fios, com o Togo, onde haviam construído a importante estação emissora de Camina». In Gisela Medina Guevara, As Relações Luso-Alemãs antes da I Guerra Mundial, A Questão da Concessão dos Sanatórios da ilha da Madeira, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1997, ISBN 972-8288-70-0.

Cortesia Colibri/JDACT

Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828. José Tengarrinha. «… as pessoas se juntavam em grupos nas ruas para discutir os assuntos públicos, como se o País todo fosse uma grande assembleia»

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Defesa da Sociedade
«(…) Queixavam-se as autoridades da crescente falta de decoro, dos preocupantes sinais da desmoralização pública, da dissolução de costumes dos que praticavam a desordem e a desenvoltura, da época convulsa que se atravessava, do transtorno de sentimentos (numerosas contas nos Livros de Secretaria da Intendência Geral da Polícia mostram a grande preocupação pelas festas públicas degenerando em libertinagem, raptos frequentes de donzelas, filhos que faltavam ao respeito pelos pais ou o célebre caso do falso mestre de línguas que seduzia mulheres para práticas ilícitas e fazia em sua casa bailes indecorosos...). Tudo isso, que afectava a tranquilidade pública e a estabilidade, pondo em causa normas por que a sociedade secularmente se regera, era objecto de permanente vigilância e contenção do Poder. Compreende-se, assim, que tenha sido essa então a preocupação central da censura, atenta a tudo o que pudesse abalar os fundamentos sociais e morais, desde a autoridade e prestígio da Nobreza e do Clero à subversão pedreirista, desde as informações falsas ou sensacionalistas que agitassem a opinião pública (mesmo os mais inocentes anúncios na imprensa periódica passaram a ser sujeitos a censura prévia após o alvoroço levantado pelo famoso caso do homem das botas de cortiça que anunciou ir atravessar o Tejo a pé) aos atropelos da língua portuguesa, que tão grandes maus tratos sofria então. Era a defesa da sociedade, em todos os seus aspectos, que acima de tudo estava em causa. E a questão era tanto mais agudamente sentida pelo Poder quanto não havia relações e valores novos suficientemente fortes para se substituírem aos tradicionais. O perigo maior era o do vazio que se criava e que iria dominar o segundo decénio de Oitocentos.
Esta nova atitude do Poder em geral e da Censura em particular prende-se com a alteração que desde o último quartel do século XVIII se assinala em Portugal no relacionamento do poder superior com a sociedade. A exemplo do que já se registara e estava a ocorrer noutros pontos da Europa, o Estado aumenta a sua capacidade de consulta, favorecendo mecanismos de comunicação mais fluida da base social para o topo da hierarquia (este facto é expressivamente documentado no amplo movimento peticionário ao trono que se desenvolve a partir de 1780 e em outros factos, como, por exemplo, a retomada por dona Maria I das tradicionais audiências gerais ao povo, nas manhãs das terças e quintas-feiras, a que concorria muita gente humilde). A sociedade, no seu conjunto, nas suas múltiplas manifestações, impregnava mais profunda e permanentemente o Poder, obrigava este a dar respostas em conformidade, definia novas categorias na relação Estado-Sociedade. O predomínio da defesa do Dogma, como relativo à Fé, passava assim para a defesa da Moral, como relativa aos costumes e' em geral, das relações sociais, reconhecendo-se que as alterações então verificadas constituíam factores de instabilização da sociedade.

Defesa do regime Político
Com as Invasões e as convulsões sociais e políticas que as acompanharam, favoreceu-se a politização da sociedade. A política passou da ciência dos gabinetes e da ocupação dos homens de Estado para objecto da curiosidade de todos, como observou o lúcido Francisco Solano Constâncio. Os testemunhos da época dão-nos conta de como, entre 1808 e 1810, não apenas em Lisboa, as pessoas se juntavam em grupos nas ruas para discutir os assuntos públicos, como se o País todo fosse uma grande assembleia». In José Tengarrinha, Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida, Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828, Edições Colibri, Lisboa, 1993, ISBN 972-8047-29-0.

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Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828. José Tengarrinha. «Normas seculares que sempre haviam pautado os contactos sociais, as relações familiares, os códigos sexuais…»

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Defesa da Doutrina
«(…) No combate às ideias que punham em causa os princípios em que assentava a soberania temporal, vai-se acentuando a tendência para defender a monarquia absoluta contra tudo o que pudesse concorrer para um mandato condicional da soberania do rei. Nesse sentido se deverá interpretar o anti-curialismo Setecentista, não identificável, pois, com as formas de anti-clericalismo que se desenvolvem nos séculos XIX e XX. Naquele, a questão central era o relacionamento entre o Estado e a Igreja, com vista à libertação de condicionamentos que permitisse a expansão da sociedade civil. A remodelação da censura feita por Pombal visava restringir o poder de Roma em favor do controlo pelo Estado. Na cena da luta ideológica, reconhecia-se a indispensabilidade da defesa da Doutrina e do Dogma contra os ateus, ímpios, sacrílegos, hereges, tanto inspirados em outras religiões como em pervertidos filósofos destes últimos tempos, que pretendiam reduzir a omnipotência divina e os seus mistérios à limitada esfera da compreensão humana. O combate apresentava como justificação central a necessidade de extirpar a influência dos jesuítas, a que se atribuíam muitos dos males do tempo. A orientação da Censura tinha, assim, como principal base a Dedução Cronológica e Analítica, compilação de todas as acusações que se haviam feito contra os jesuítas, além de elaboração programática respeitante à defesa dos poderes do Estado e de atribuições mais ampliadas à igreja nacional. Partindo da alegada necessidade de combater os jesuítas, era, pois, toda uma larga apologia de um corpo de princípios e de doutrina indispensável para a segurança do Estado. O poder temporal assentava a sua defesa ideológica, assim, em grande medida, na base sagrada.

Defesa da Sociedade
A modificação que se dá no conteúdo essencial da censura no último quartel do século XVIII (independentemente das formas que assumiu) tem a ver com o convulsionamento que então se regista da sociedade portuguesa e, também, os ecos que a ela chegam das perturbações exteriores. Entenda-se, porém, que, diferentemente do que se passa lá fora, não é a questão do regime político que está acima de tudo em foco. Esse encontrava-se relativamente estabilizado através do equilíbrio entre o poder secular e o poder religioso conseguido, ainda que precariamente, sob a rainha Maria I. Aqui, o que perturba e inquieta o Poder é, acima de tudo, a instabilidade e insegurança sociais que se mostram sob vários aspectos. Eram abalados como nunca alguns dos tradicionais suportes da sociedade.
Via-se que o regime senhorial constituía um obstáculo a que fossem ultrapassadas as maiores dificuldades estruturais da nossa agricultura. A grande aristocracia rural, absenteísta, não mostrava condições, contrariamente ao que acontecera na Grã-Bretanha, para ser motor de modernização. Menos, ainda, no imenso domínio territorial da Igreja, à margem dos grandes circuitos de comercialização marítima. Antes da Revolução Francesa, já a pressão camponesa punha em causa em algumas regiões a ordem tradicional dos campos. Também os ditames fisiocráticos da Academia Real das Ciências e as próprias exigências do Estado mostravam a fragilidade do regime senhorial. Abalavam-se os sustentáculos da sociedade tradicional. À luz dos interesses gerais da sociedade e dos princípios do Direito Natural assistia-se, de facto, à subversão de relações sociais tradicionais. As próprias formas de tratamento eram disso expressão, de nada servindo as severas medidas legislativas tomadas. Normas seculares que sempre haviam pautado os contactos sociais, as relações familiares, os códigos sexuais eram desrespeitados, na prática, com muito mais frequência». In José Tengarrinha, Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida, Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828, Edições Colibri, Lisboa, 1993, ISBN 972-8047-29-0.

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Pecados e Seduções. John Updike. «O sexo e a religião tinham odores distintos e antigos, as famílias estavam empoleiradas, como ninhos trémulos, sobre os ramos emaranhados da história passada, e a morte podia atacar a meio da noite»

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«(…) Tinha vendido a sua quinta e mudara-se para Alton, a dezasseis quilómetros de distância. A seguir, com a Depressão, as suas poupanças esfumaram-se e a filha foi viver para lá com o marido e o filho. Um dos casais tinha uma casa e o outro tinha alguma capacidade de ganhar dinheiro. O pai de Owen era contabilista numa das tecelagens em Alton. A mãe arruivada de Owen, que nessa altura era magra, vendia tecidos num grande estabelecimento de Alton até ao dia em que o seu rapazinho lhe causou remorsos ao correr atrás dela pela Avenue, a soluçar, quando ela ia apanhar o eléctrico; largou o emprego para passar mais tempo com ele. O pai, Floyd Mackenzie, era de Maryland. A Owen tinha sido dado o nome de um avô que morrera antes de ele nascer, mas que, pelos relatos lendários da família, tivera uma mente brilhante, viva e inventiva, que eles pensavam ser resultado da sua viagem escocesa. Este primeiro Owen era dono de uma loja de ferragens em Mount Airy e inventava coisas no seu tempo livre, melhoramentos para as ferramentas que vendia, um extractor de ervas daninhas que uma pessoa podia usar sem se curvar, um aparador de sebes a motor para tornar o movimento bastante mais fácil, mas nenhuma companhia tinha pegado nas suas invenções para o tornar rico. Morrera falido e tuberculoso. No entanto, uma centelha das suas esperanças de levar a melhor às dificuldades tinha-se transmitido ao neto. Os Mackenzie não eram idiotas. O pai de Owen dissera-lhe: sais ao meu velhote. Tens a curiosidade intelectual dele. Ele gostava de estar sossegado a descobrir como é que as coisas funcionam. Quanto a mim, nunca me interroguei sobre nada, a não ser de onde viria. O outro avô, com quem Owen vivia, tinha também um pouco de sonhador quando vendeu a sua quinta e investiu em acções que se tornaram inúteis. Era um alemão da Pensilvânia, mas de uma estirpe adaptada, que falava perfeitamente o inglês, lia fielmente o jornal vespertino e embelezava a sua ociosidade com pensamentos amplos e declarações grandiloquentes. Owen reconhecia no velhote, com o seu bigode amarelado, os cabelos brancos e as mãos a gesticular, a melancolia do estrangeiro parcial que não tinha conseguido encontrar o seu caminho até às fontes do poder, aos segredos decisivos, no único ambiente que alguma vez conheceu.
O paizinho devia ter sido político, tem o dom da verborreia, dizia o seu genro; mas até Owen conseguia perceber que o avô era demasiado escrupuloso para a política, demasiado passivo no modo como ia passando os seus dias, a começar pelo quintal das traseiras, onde cavava e mondava a horta e podia fumar um cigarro, depois no quarto do andar de cima, onde fazia uma sesta, terminando no sofá da sala com espaldar de vime, onde se sentava à espera que a avó lhe preparasse o jantar. A casa deles era em Alton, mas, à excepção da filha única e da mulher, ninguém era de lá. A avó era a mais nova de dez irmãos, um membro de um clã populoso espalhado por todo o país. Alton, estava cheio de parentes dela, primos e sobrinhos; por vezes, a avó ganhava um dinheiro extra a ajudar um deles numa grande limpeza de Primavera ou a ajudar a preparar e a servir a refeição para uma grande reunião. Estes parentes tinham dinheiro: possuíam pequenos negócios ou ocupavam bons cargos nas fábricas de meias, usavam roupas boas e passavam férias nos montes Poconos ou na costa de Jersey. Quando Owen os ouvia falar da Tia Annie com simpatia, naquele tom sentimental e lento a que as pessoas da província facilmente se acostumam, ao princípio tinha dificuldade em perceber que se estavam a referir à avó. Nós somos pessoas diferentes, apercebeu-se ele, para pessoas diferentes. Depois de Owen ter partido, a sua povoação original parecia um lugar inocente e precioso, mas enquanto lá vivera não a vira dessa maneira. Aquilo era o mundo, com um passado impenetrável e limites para lá do horizonte. Havia cobras na erva e nos montes de pedras aquecidos pelo sol. O sexo e a religião tinham odores distintos e antigos, as famílias estavam empoleiradas, como ninhos trémulos, sobre os ramos emaranhados da história passada, e a morte podia atacar a meio da noite». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.
                                                          
Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT

Pecados e Seduções. John Updike. «A própria frase tinha um som terrível e pecaminoso e um gosto a cinzas de desastre, como as casas bombardeadas a fumegar que preenchiam os noticiários da Fox…»


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«(…) Quando lhe disseram, na segunda classe, que teria de usar óculos para ler e para ver cinema, Owen chorou. Um dia, consolava-se a si mesmo, iria deixar de precisar deles. Talvez o facto de os ter encontrado não fosse exactamente um milagre, porque ele tomava aquele atalho por cima das ervas todos os dias para se encontrar com Buddy Rourke, o seu amigo da classe a seguir, para irem juntos para a escola, afastados do grupo de raparigas da 2ª Sfteet. Buddy perdera o pai, o que o tornava estranho e ligeiramente assustador. Era carrancudo e tinha pêlos entre as sobrancelhas. Tinha um cabelo liso e grosso, espetado para a frente, e uma boca que nunca sorria por causa do aparelho, uns arames de metal brilhante com um quadrado prateado no meio de cada dente. Owen teve vontade de correr até casa para contar à mãe que tinha encontrado os óculos e que o pai não ia ter de comprar uns novos, mas não se queria atrasar para ir ao encontro de Buddy e prosseguiu, apressado, com o estojo recuperado a deixar húmido o bolso dos seus calções, fazendo a pele da coxa arrepiar-se. Uma outra manhã, bem cedo, Owen ouviu o som de um tiro que vinha daquele lado da casa, para lá do terreno baldio. Ele estava a dormir. Parecia ter acordado no momento antes de escutar, como num sonho, o barulho que o acordou. Tinha visto filmes de gangsters vezes suficientes para reconhecer o som da pólvora sob percussão, mas nos filmes surgia em vagas de metralhadora, enquanto este era um som único e isolado. Os pais ouviram-no também, porque se agitaram no quarto deles, atrás da sua porta fechada, e as duas vozes, masculina e feminina, entrelaçaram-se. Depois, ficaram novamente em silêncio. Não estava muito escuro lá fora; as árvores no quintal ao lado eram silhuetas, volumes que emergiam daquela mancha de luz cinzenta, com um ligeiro tom rosado no céu, antes de os pássaros começarem a chilrear. A rua estava silenciosa, despojada de trânsito, nem mesmo uma carroça. Mais tarde, Owen ouviu uma sirene e, mais tarde ainda, a notícia, relatada ao pequeno-almoço pelo pai, que tinha ido à rua saber as novidades, de que um jovem da casa dos Hoffmans, duas portas a seguir ao terreno baldio, se tinha alvejado a si próprio com um revólver da tropa, um Colt 38 que Wes Hoffman guardara do seu tempo de serviço na Primeira Guerra Mundial. Danny Hoffman não tinha ainda vinte anos, mas uma criança sob a sua guarda num acampamento de Verão tinha mergulhado em água pouco profunda e partido o pescoço. A responsabilidade assombrava-o, apesar de aquilo ter acontecido no ano anterior. Danny nunca mais voltara a ser o mesmo; ficava em casa a escutar as séries da rádio e deixara de procurar emprego.
Estava explicado. Ao longo de uma dúzia de anos, desde a Depressão à Segunda Guerra Mundial, de 1933 a 1945, este foi o evento mais dramático no bairro de Owen. A mulher do outro lado da rua, mrs. Yost, tinha uma bandeira com uma estrela de cinco pontas na janela da frente, mas os seus cinco filhos soldados voltaram sãos e salvos. Skip Potteiger engravidou Mary Lou Brumbach, da casa ao lado, quando ela tinha apenas dezassete anos, mas a seguir casou com ela, portanto, ficou tudo bem, no Dia D, o bebé estava num carrinho que Mary Lou empurrava a caminho da Acme, por cima dos regos que levavam a água dos algerozes para as valetas e pelas lajes do passeio que as raízes dos castanheiros estavam a levantar, e que faziam as pessoas tropeçar quando andavam de patins. Nas tardes quentes de Verão, os sons das brigas familiares atravessavam a rua, vindos das janelas de rede da fila compacta das casas do outro lado, o lado alto, ao cimo das escadas de cimento dos muros que se inclinavam precariamente para fora. Mas não havia divórcios, de acordo com o que Owen recordava. Havia vozes alteradas e o som dos gritos e das portas a bater atravessava a vizinhança, mas os divórcios aconteciam noutros sítios, em Hollywood e em Nova Iorque, e eram escândalos trágicos, produzindo aquilo que ninguém, e certamente nenhuma criança, desejava: um lar desfeito.
A própria frase tinha um som terrível e pecaminoso e um gosto a cinzas de desastre, como as casas bombardeadas a fumegar que preenchiam os noticiários da Fox Movietone no Scheherazade, a sala de cinema local. O mundo estava cheio de destruição e de maldade, e apenas os Estados Unidos, ao que parecia, o podiam endireitar. O país estava em guerra e, na fantasia de Owen, o terreno baldio que ele via da janela do seu quarto era a cratera de uma bomba coberta pelas ervas. O salgueiro original mantinha-se vivo, mimado como um velho dignitário com injecções de pesticida e fertilizante nas suas raízes, através de buracos feitos com um pé-de-cabra; sobrevivia desde o tempo em que tinha havido uma fábrica de papel com uma azenha, um lago cheio de trutas e uma pista de terra para corridas de atrelados, antes de traçarem uma rede de ruas na planície baixa a norte do Pike. A casa de Owen, que, na verdade, não era a sua casa, nem mesmo a dos seus pais; ela pertencia aos pais da mãe dele, Isaac e Anna Rausch, era uma das maiores e mais antigas ao longo da Mifflin Avenue, comprada pelo seu avô quando se julgou rico, com o lucro da sua plantação de tabaco durante a Primeira Guerra Mundial». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.
                                                          
Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Maria Graça Ventura. «Uma das finalidades primordiais da expedição comandada por Martim Afonso Sousa (1530-1532) relacionava-se com o combate à penetração francesa no Brasil»

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A disputa luso-francesa pelo domínio do Brasil até 1580
Jorge Couto
«(…) As causas do insucesso da embaixada de Allesgle terão residido, por um lado, no facto de a Coroa lusitana considerar claramente atentatória dos seus direitos, à luz dos tratados internacionais e das bulas papais, ou seja, da doutrina do Mare Clausum, a intromissão de navios estrangeiros nas águas e territórios reservados a Portugal, pelo que julgava inteiramente legítimo que as suas esquadras reprimissem os infractores. Por outro lado, a enviatura gaulesa ocorreu na fase final das negociações com Carlos V para a resolução do problema das Molucas, circunstância que permite formular a hipótese de João III ter protelado propositadamente a resposta a dar ao representante da França enquanto não estivesse definitivamente solucionado o contencioso com o imperador. A missão de Allesgle contribuiu para que o governo joanino se certificasse de que a França não desistiria pacificamente de disputar a Portugal o comércio do pau-brasil e a soberania da Província de Santa Cruz. A celebração do Acordo de Saragoça (Abril de 1529), que encerrou o conflito com a Espanha sobre a delimitação das esferas de influência ibéricas no Pacífico, libertou João III de uma preocupação fundamental, uma vez que estava em jogo o monopólio do comércio das especiarias da Ásia de Sueste, e permitiu-lhe enfrentar mais resolutamente a ameaça turca no Índico e os desafios franceses no Atlântico e no Brasil.
O sistema de capitanias de mar e terra e a via diplomática revelaram-se incapazes de produzir os resultados desejados, ou seja, a eliminação da presença francesa na América do Sul. A manifesta insuficiência desse modelo para garantir o incontestável domínio português sobre o Brasil induziu o círculo governativo joanino a ponderar, no final da década de vinte, a adopção de soluções mais eficazes destinadas a assegurar a soberania lusitana sobre a totalidade do território americano que lhe pertencia de acordo com o Tratado de Tordesilhas. No entanto, o monarca francês não lhe reconhecia legitimidade, exigindo ironicamente que lhe mostrassem a cláusula do testamento de Adão que o excluía da partilha do Mundo.
Uma das finalidades primordiais da expedição comandada por Martim Afonso Sousa (1530-1532) relacionava-se com o combate à penetração francesa no Brasil. Logo a 31 de Janeiro de 1531, a esquadra apresou uma nau nas imediações do cabo de Percaauri (actual Pontal da Boa Vista) no litoral pernambucano. Aquela embarcação dispunha de artilharia e tinha os porões a abarrotar de pau-brasil. Na mesma data, foi detectada e tomada, nas proximidades da ilha de Santo Aleixo (9º 30' S), outra nau carregada do mesmo produto. No dia 2 de Fevereiro, a caravela então comandada por Pero Lopes Sousa abalroou e capturou, após renhido combate, uma terceira nau, igualmente provida de canhões, munições de guerra e grande carga de pau-brasil. Concluídas essas operações e efectuado o reagrupamento, a arnada rumou para norte, com destino a Igaraçu, onde, em meados de Fevereiro, tomou conhecimento de que a feitoria régía tinha sido assaltada e saqueada, em Dezembro de 1530, por um galeão francôs, tendo o respectivo feitor, Diogo Dias, dirigindo-se para abaía da Guanabara.
A 19 de Fevereiro de 1531, Martim Afonso decidiu queimar uma das naus apreendidas e enviar outra a Lisboa, sob o comando de João Sousa, com os prisioneiros franceses, 927 quintais de pau-brasil e relatórios dirigidos a João III. No mesmo mês em que partiu de Lisboa a armada lusitana, zarpou de Marselha La Pèlerine (antiga nau portuguesa São Tomé, pertencente ao armador portuense André Afonso, que fora capturada por corsários franceses) com destino ao Brasil. Tratava-se de um navio armado por Bertrand d’Ornesan, barão de Saint-Blancard, comandante da esquadra francesa de galés no Mediterrâneo, que pretendia fundar uma feitoria e estabelecer um núcleo de colonos no Novo Mundo português. Já não eram apenas os homens de negócios da França atlântica, sobretudo da Normandia e da Bretanha, que se interessavam pela Província de Santa Cruz. Os lucros proporcionados pelo comércio dos produtos brasílicos começavam, então, a despertar o interesse de alguns círculos navais e mercantis da França mediterrânica, onde se localizavam os centros económicos mais dinâmicos daquela monarquia, designadamente Lião e Marselha». In Jorge Couto, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura, Edições Colibri, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-21-2.

Cortesia de Colibri/JDACT

Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Maria Graça Ventura. «João III deu posteriormente instruções ao seu embaixador em Paris para que diligenciasse no sentido de requerer a punição de Angoulême, por ter transmitido uma versão deturpada das negociações e ter ocultado a cópia do auto que então se redigira»

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A disputa luso-francesa pelo domínio do Brasil até 1580
Jorge Couto
«(…) A existência de uma Casa de Valois relativamente poderosa no plano das forças terrestres tinha para a estratégia lusitana a vantagem de constituir uma ameaça latente à segurança das fronteiras imperiais, contribuindo, desse modo, para aliviar excessivas pressões espanholas sobre o Império Português, sobretudo numa conjuntura em que os contenciosos sobre as ilhas Molucas e a bacia platina se encontravam por solucionar. Daí que, apesar dos renhidos combates que se travaram entre portugueses e franceses no Atlântico e no Brasil, as duas monarquias tenham optado por nunca romper abertamente as hostilidades no âmbito europeu, já que receavam o imenso poderio territorial, económico e militar acumulado pelo imperador, bem como os prejuízos económicos que um total corte de relações acarretaria a ambos os reinos.
A França desejava continuar a exportar as suas produções para o espaço imperial português e a abastecer-se de mercadorias orientais em Lisboa. Portugal, por seu turno, pretendia que os súbditos de Francisco I não atacassem os navios que efectuavam as ligações com a feitoria da Flandres e que obrigatoriamente tinham de costear a região atlântica gaulesa. As informações provenientes de França de que uma armada de dez navios se aprestava para zarpar com destino ao Brasil levaram João III a investir Cristóvão Jaques nas funções de Governador das partes do Brasil, confiando-lhe a chefia de uma forte esquadra, formada por uma nau e quatro caravelas comandadas por experimentados capitães, designadamente Diogo Leite, Gonçalo Leite e Gaspar Correia, com a missão de aprisionar todas as embarcações estrangeiras que encontrasse na costa brasílica.
Os navios partiram de Lisboa, provavelmente no mês de Fevereiro de 1527, atingindo a feitoria de Pernambuco em finais de Abril ou inícios de Maio. Jaques tomou, então, conhecimento do ataque à nau San Gabriel, capitaneada por Rodrigo de Acuña, que se encontrava em reparação na embocadura do rio de São Francisco, perpetrado, no final de Outubro de 1526, por três navios franceses. Depois de ter mandado carregar a nau-capitânia de pau-brasil e de a despachar para Portugal com relatórios para o rei, Jaques decidiu empreender a busca das embarcações intrusas rumo ao Sul. Possivelmente em Julho, a esquadra lusitana surpreendeu, na Bahia, três naus bretoas. Após duro combate, foram afundados dois dos navios, apresado um terceiro e recuperada uma caravela portuguesa que havia sido capturada pela derrotada frota gaulesa. As tripulações francesas fugiram ou renderam-se, os pilotos e alguns membros da equipagem foram executados, tendo sido feito grande número de prisioneiros. Este grau de violência foi intencionalmente utilizado com o objectivo de dissuadir os mercadores normandos e bretões de continuarem a financiar o envio de navios ao Brasil, explicando-se ainda pelo facto de os comandantes das embarcações serem responsáveis pelo assalto do navio português destinado à Mina e pela morte de muitos dos seus tripulantes. Em Maio de 1528, o capitão-mor mandou regressar a caravela de Gonçalo Leite com uma remessa de pau-brasil e com cartas para João III. No final do ano, a armada de Jaques foi substituída por uma esquadra comandada por António Ribeiro que a 2 de Novembro já se encontrava em Pernambuco.
Os armadores dos navios franceses recorreram inicialmente ao conde de Lavall, lugar-tenente régio no ducado da Bretanha, e, posteriormente, ao próprio soberano no sentido de pressionar o rei de Portugal a compensá-los dos elevados prejuízos materiais e humanos provocados pela armada lusitana. Por carta-patente de 6 de Setembro de 1528, Francisco I cometeu ao rei de armas do título de Angoulême a incumbência de exigir ao governo de Lisboa uma indemnizaçáo no valor de 60 000 escudos para os seus súbditos bretões (Ivo Coadqungar, Francisco Guéret, Maturino Tournemouche, João Bureau e João Jamet), sob pena de mandar passar cartas de marca e represália contra os bens, navios e mercadorias dos portugueses até ressarcir integralmente aqueles homens de negócios das perdas sofridas.
O emissário do rei de França chegou à capital portuguesa a 18 de Janeiro de 1529, sendo.prontamente recebido por João III. Existem duas versões contraditórias sobre a forma como decorreram as negociações encetadas por Helies Allesgle na corte de Lisboa. O representante de Francisco I, através de um memorial datado de 3 de Julho desse ano, informou o seu soberano de que perïnanecera nove semanas na capital portuguesa sem que tivessem sido satisfeitas as reivindicações apresentadas, tendo-lhe o doutor Diogo Gouveia Sénior, um dos mais influentes conselheiros régios, retirado quaisquer esperanças na obtenção de sucesso para a sua missão. Todavia, aquele humanista ter-se-ia limitado a transmitir as deliberações oficiais, perfilhando a opinião de que se deveria proceder à libertação dos bretões para permitir o apuramento da verdade e o castigo dos franceses que afirmavam terem os homens de Cristóvão Jaques supliciado os prisioneiros.
O monarca lusitano comunicou a João da Silveira ter sugerido ao enviado francês que os queixosos recorressem aos tribunais portugueses que apreciariam o caso. O monarca João III deu posteriormente instruções ao seu embaixador em Paris para que diligenciasse no sentido de requerer a punição de Angoulême, por ter transmitido uma versão deturpada das negociações e ter ocultado a cópia do auto que então se redigira». In Jorge Couto, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura, Edições Colibri, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-21-2.

Cortesia de Colibri/JDACT