segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «A repristinação dos acontecimentos tem certamente uma intenção. Várias propostas têm sido aventadas para explicar essa primeira memória e a verosimilhança joga com a carga de significação atribuída aos dados do texto»

jdact

«(…) A sensibilização para a integralidade do projecto cisterciense animará porventura alguns a indagar das suas razões, não apenas em atitude intelectiva de análise de fontes, mas em experiência de vida, quando descobrirem que a vida monástica é, a vida cristã que rompe todos os vínculos (...) que a impedem de ser integral. A leitura dos primitivos cistercienses impõe-se a todos quantos queiram reavaliar o sentido da preservação de uma memória que não se contente com um vago sentimento de nostalgia ou preservação de monumentos. É impossível ficar indiferente à experiência cisterciense, pois ela marcou a Europa ao longo de séculos e sobretudo nos alvores de um período particularmente fecundo da gestação do mundo ocidental em que vivemos. Os monges de Cister traçaram caminhos que são itinerários, deixaram edifícios que são monumentos, arrotearam terras que são definitivamente espaços humanos. As suas vozes são reconhecíveis no silêncio dos seus livros e dos seus documentos. Não basta recordá-los, é necessário ir-lhes ao encontro. Como escreveu Dom Maur Cocheril, monge cisterciense que longamente percorreu os caminhos portugueses dos seus irmãos de outros tempos:

Quando os monges, durante séculos e séculos,
impressionaram com a sua marca uma terra,
ainda que não ficasse da moradia dos monges
senão uma pedra que se desagrega,
senão um grão de areia que se esboroa,
a pedra, a areia falam dos monges.
Mesmo que a pedra e o grão de areia
por seu turno desaparecessem,
a terra, a velha e nobre terra,
a terra sobre a qual os monges se debruçavam,
o vale em que rezavam,
as árvores que plantaram
continuariam a falar deles.
Porque, durante séculos e séculos,
os monges impressionaram com a sua marca uma terra.

A tradução dos primitivos documentos cistercienses que aqui oferecemos deseja servir de apoio para a descoberta dessas marcas. In Aires A. Nascimento

Os inícios da Ordem Cisterciense: exordium paruum
A memória de Cister cedo procurou constituir testemunho dos acontecimentos em forma narrativa. Não há, porém, indicação explícita e directa de quem o faz e quando isso acontece ou quais as razões que estão subjacentes a um acto de memória apresentado como tal. Reconhece-se facilmente que isso dá lugar a uma encenação em que os fundadores de Cister tomam sobre si a responsabilidade de uma narrativa em que já são notórios desenvolvimentos que ocorreram ao longo de uns vinte anos, desenvolvimentos esses que não estavam de forma alguma contidos no primeiro plano ou propósito de reforma monástica que Roberto e seus companheiros pretendiam levar a cabo. A repristinação dos acontecimentos tem certamente uma intenção. Várias propostas têm sido aventadas para explicar essa primeira memória e a verosimilhança joga com a carga de significação atribuída aos dados do texto.
Um cenário possível para a sua elaboração é o da entrada de um contingente significativo de monges em torno de 1132, que desencadeia ou apressa (caso se aceite a hipótese de Estêvão Harding ter concebido antes tal projecto para obviar a dificuldades económicas da primitiva comunidade) a fundação de novas abadias. Qualquer dos dois factores, em si, e sem que a conjugação deles se revele essencial, pode ter gerado a necessidade de dar testemunho dos primitivos anos de implantação da nova observância monástica (tão nova se pretendia que o próprio mosteiro tinha sido designado por novo, Nouum Monasterium, e só posteriormente o nome alterna com o topónimo Cistelium, convertido do nome comum deduzido das características físicas do local, talvez por sobreposição de nova interpretação de um antigo nome derivado da existência de um marco miliário, cis-tertium). Dirigido a um novo grupo, que representava uma nova geração e se assumia com uma dinâmica que se vê retratada em Bernardo, monge saído da fidalguia borguinhona e que tem no terreno apoios que lhe permitem lançar Claraval e ganhar liderança, pode representar a reacção dos mais antigos que desejam afirmar as razões da sua iniciativa primeira e dar conta da sensatez das opções tomadas ao longo das primeiras duas décadas, ao mesmo tempo que se revêem na juventude que agora aparece disposta a assumir as responsabilidades de continuadores. Porém, o confronto que o texto revela entre esses dois grupos é por demais pacífico para exigir que lhes reconheçamos uma interpenetração de perspectivas e para pressupor a veneração dos primeiros tempos de uma história comum em nome dos fundadores». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT