sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828. José Tengarrinha. «Normas seculares que sempre haviam pautado os contactos sociais, as relações familiares, os códigos sexuais…»

jdact

Defesa da Doutrina
«(…) No combate às ideias que punham em causa os princípios em que assentava a soberania temporal, vai-se acentuando a tendência para defender a monarquia absoluta contra tudo o que pudesse concorrer para um mandato condicional da soberania do rei. Nesse sentido se deverá interpretar o anti-curialismo Setecentista, não identificável, pois, com as formas de anti-clericalismo que se desenvolvem nos séculos XIX e XX. Naquele, a questão central era o relacionamento entre o Estado e a Igreja, com vista à libertação de condicionamentos que permitisse a expansão da sociedade civil. A remodelação da censura feita por Pombal visava restringir o poder de Roma em favor do controlo pelo Estado. Na cena da luta ideológica, reconhecia-se a indispensabilidade da defesa da Doutrina e do Dogma contra os ateus, ímpios, sacrílegos, hereges, tanto inspirados em outras religiões como em pervertidos filósofos destes últimos tempos, que pretendiam reduzir a omnipotência divina e os seus mistérios à limitada esfera da compreensão humana. O combate apresentava como justificação central a necessidade de extirpar a influência dos jesuítas, a que se atribuíam muitos dos males do tempo. A orientação da Censura tinha, assim, como principal base a Dedução Cronológica e Analítica, compilação de todas as acusações que se haviam feito contra os jesuítas, além de elaboração programática respeitante à defesa dos poderes do Estado e de atribuições mais ampliadas à igreja nacional. Partindo da alegada necessidade de combater os jesuítas, era, pois, toda uma larga apologia de um corpo de princípios e de doutrina indispensável para a segurança do Estado. O poder temporal assentava a sua defesa ideológica, assim, em grande medida, na base sagrada.

Defesa da Sociedade
A modificação que se dá no conteúdo essencial da censura no último quartel do século XVIII (independentemente das formas que assumiu) tem a ver com o convulsionamento que então se regista da sociedade portuguesa e, também, os ecos que a ela chegam das perturbações exteriores. Entenda-se, porém, que, diferentemente do que se passa lá fora, não é a questão do regime político que está acima de tudo em foco. Esse encontrava-se relativamente estabilizado através do equilíbrio entre o poder secular e o poder religioso conseguido, ainda que precariamente, sob a rainha Maria I. Aqui, o que perturba e inquieta o Poder é, acima de tudo, a instabilidade e insegurança sociais que se mostram sob vários aspectos. Eram abalados como nunca alguns dos tradicionais suportes da sociedade.
Via-se que o regime senhorial constituía um obstáculo a que fossem ultrapassadas as maiores dificuldades estruturais da nossa agricultura. A grande aristocracia rural, absenteísta, não mostrava condições, contrariamente ao que acontecera na Grã-Bretanha, para ser motor de modernização. Menos, ainda, no imenso domínio territorial da Igreja, à margem dos grandes circuitos de comercialização marítima. Antes da Revolução Francesa, já a pressão camponesa punha em causa em algumas regiões a ordem tradicional dos campos. Também os ditames fisiocráticos da Academia Real das Ciências e as próprias exigências do Estado mostravam a fragilidade do regime senhorial. Abalavam-se os sustentáculos da sociedade tradicional. À luz dos interesses gerais da sociedade e dos princípios do Direito Natural assistia-se, de facto, à subversão de relações sociais tradicionais. As próprias formas de tratamento eram disso expressão, de nada servindo as severas medidas legislativas tomadas. Normas seculares que sempre haviam pautado os contactos sociais, as relações familiares, os códigos sexuais eram desrespeitados, na prática, com muito mais frequência». In José Tengarrinha, Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida, Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828, Edições Colibri, Lisboa, 1993, ISBN 972-8047-29-0.

Cortesia de Colibri/JDACT