domingo, 16 de setembro de 2018

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «A maior humilhação, recordou Paio Soares Maia, é Fernão Peres nos limitar a confirmantes de documentos, afastando-nos da peleja contra os almorávidas. Acaso olvida ele que foram os senhores da Maia…»

jdact e wikipedia

Independência
«(…) Por Deus, não vos precipitastes? Chega de humilhações, meu tio, anunciou Paio Soares Maia, sobrinho do arcebispo. É o galego Fernão Peres quem detém as rédeas do poder. E como podeis defender dona Teresa, que teve o descaramento de vos mandar prender? Por pouco tempo, sobrinho. Aqui me vedes, são e salvo, com a graça de Deus. De Deus, ou do papa?, inquiriu o vozeirão de Soeiro Mendes. Não tivesse o Sumo Pontífice publicado uma bula a exigir a vossa libertação, quem sabe por quanto tempo a rainha vos manteria no calabouço? Era ponto assente que dona Teresa, que se intitulava rainha, fora longe demais. No início, haviam crido nela. Evitara que Coimbra caísse nas mãos dos almorávidas, a seita moura que governava a Hispânia islâmica, denominada al-Andalus. A rainha contara, porém, com o auxílio de cavaleiros galegos e envolvera-se em relações amorosas com os dois filhos do conde de Trava. Era no que dava, pôr uma dona à frente dos destinos do condado Portucalense. Deixava-se enredar em lutas e intrigas com a irmã Urraca. Tanto se punha ao lado dela, como contra ela. Por último, tomara o partido do arcebispo de Santiago de Compostela, quando este reclamou a jurisdição sobre as dioceses a sul do Douro: Lamego, Viseu e Coimbra. Na verdade, o papa Calixto II transferira para Compostela os direitos de Mérida, antiga capital da Lusitânia, que ainda se encontrava em poder dos mouros. Paio Mendes Maia, arcebispo de Braga, recusara-se a acatar tais ordens. Braga havia sido a capital da Galécia romana e não passava pela cabeça do arcebispo aceitar a supremacia de Santiago de Compostela. Tinha sido esta a razão por que dona Teresa o mandara prender.
Agora, a rainha teria de passar sem o apoio de alguns barões portucalenses. Ali, na companhia do arcebispo de Braga, encontravam-se os mais poderosos, os que tinham constituído o núcleo mais prestigiado da corte do falecido conde Henrique. Além de Soeiro Mendes Sousa e Paio Soares Maia, Egas Moniz Ribadouro viera com os seus dois irmãos, Ermígio e Mendo. E até o galego Sancho Nunes, irmão do conde Afonso Nunes Celanova, marcava presença naquele serão, na sua qualidade de senhor da terra de Ponte de Lima. Os domínios dos três irmãos de Celanova estendiam-se a vastas regiões portucalenses, não só na terra de Ponte de Lima, como na de Panóias, nas margens do Vizela e do Corgo. A Fernão Peres Trava foi concedida a tenência de Coimbra, lançou Soeiro Mendes Grosso, cheio de desdenho. A maior humilhação, recordou Paio Soares Maia, é Fernão Peres nos limitar a confirmantes de documentos, afastando-nos da peleja contra os almorávidas. Acaso olvida ele que foram os senhores da Maia, os meus antepassados, que conquistaram o castelo de Montemor-o-Velho, às portas de Coimbra, numa altura em que aquelas terras ainda estavam nas mãos dos infiéis? Acrescentou, orgulhoso: todos os meus antepassados participaram nas campanhas da Beira, comandadas por el-rei Fernando Magno, que culminou com a conquista da própria cidade de Coimbra. E vosso pai, completou o arcebispo, o meu falecido irmão, foi governador de Santarém, ao tempo em que essa cidade pertencia ao imperador Afonso VI, mas que, infelizmente, voltou ao poder da mourama.
Perderam-se em lembranças, recordaram glórias militares, ao calor da lareira do arcebispo. Também a família de Egas Moniz se orgulhava dos seus pergaminhos. Os Gascos, antepassados dos Ribadouro, haviam combatido os mouros, antes da conquista de Coimbra, intervindo na ocupação do vale do Douro, a leste da foz do rio Paiva. A indignação contra o galego Fernão Peres de Trava crescia. Os ânimos exaltaram-se, o arcebispo acabou a bradar: pois eu, meus senhores, com a autoridade que Deus delegou nas minhas mãos, declaro a ligação entre donaTeresa e Fernão Peres incestuosa! Por Deus, eminência, suplicou Egas Moniz. Bem sabeis que a nossa rainha já andou de amores com Bermudo Peres, o próprio irmão de Fernão. O mesmo Bermudo, acrescentou Ermígio Moniz, que desposou Urraca Henriques. Dona Teresa fez do amante o seu próprio genro!
Seguiu-se um silêncio indignado, a que o arcebispo pôs fim: só me ocorre uma explicação: a ambição e a sede de poder cegaram dona Teresa, impedindo-a de destrinçar o bem do mal, julgando-se acima de qualquer lei, de Deus ou dos homens. Aonde iremos nós parar?, questionou o Grosso. Digo-vos: o herdeiro do conde Henrique é o único com legitimidade para acabar com a supremacia de Fernão Peres Trava! Egas e Ermígio Moniz entreolharam-se, o primeiro declarou: não olvidemos que a mãe o chamou a si, quando ele completou os catorze anos. Esteve em Coimbra, outorgou e subscreveu diplomas da rainha..., junto com Fernão Peres! Pois há mister de afastá-lo dessa corte de víboras, exigiu Soeiro Mendes. E eu sei, pelo meu irmão Gonçalo, que o mancebo promete ser um belo dum guerreiro. É verdade, concordou Egas Moniz. Aprende lesto, seja o que for». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
               
Cortesia de Ésquilo/JDACT