sábado, 8 de setembro de 2018

A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera. «A convenção não escrita da amizade erótica implicava que Tomás excluísse o amor da sua vida. Se transgredisse esta condição…»

jdact e wikipedia

O peso e a leveza
«(…) Tinha o método por perfeito e costumava apontar-lhe as vantagens, dizendo aos amigos: há que observar a regra dos três. A mesma mulher, num espaço de tempo muito curto, nunca mais de três vezes. Anos e anos, só se deixarmos passar pelo menos três semanas entre cada encontro. Este sistema dava-lhe a possibilidade de nunca romper com as amantes e de tê-las em abundância. Nem sempre era bem entendido. De todas as suas amigas, quem o entendia melhor era Sabina, uma pintora. Esta dizia-lhe: gosto muito de ti porque és precisamente o contrário do kitsch. No reino de kitsch, tu eras um monstro. Num filme americano ou num filme russo nunca passarias de um caso repugnante. Foi portanto a Sabina que pediu ajuda para arranjar trabalho em Praga para Tereza. Como exigiam as regras não escritas da amizade erótica, Sabina prometeu-lhe fazer o melhor que pudesse e, de facto, não tardou a descobrir um lugar no laboratório de fotografia de um semanário. Era um trabalho que não exigia qualquer espécie de qualificação mas, de qualquer forma, Tereza abandonava a cervejaria para se integrar na corporação do pessoal da imprensa. A própria Sabina foi, em pessoa, apresentá-la à redacção e Tomás ficou a pensar que nunca tivera melhor amiga.

A convenção não escrita da amizade erótica implicava que Tomás excluísse o amor da sua vida. Se transgredisse esta condição, as suas outras amantes, a partir daí numa posição subalterna, revoltar-se-iam imediatamente. Arranjou, portanto, um quarto para onde Tereza teve de levar a sua pesadíssima mala. Queria tomar conta dela, protegê-la, gozar a sua presença, mas não sentia necessidade nenhuma de mudar de vida. Por isso não queria que se soubesse que ela dormia na sua casa. A partilha do sono era o corpo de delito do amor. Com as outras mulheres nunca dormia. Quando ia a casa delas, era fácil, porque podia sair quando lhe apetecia. O caso era mais delicado quando eram elas que vinham a sua casa e lhes explicava que, depois da meia-noite, tinha de levá-las porque sofria de insónias e não conseguia dormir ao lado de outra pessoa. Esta explicação não andava longe da verdade, mas a razão principal era menos nobre e Tomás não se atrevia a confessar às companheiras que, nos momentos que se seguem ao amor, sentia um desejo imperioso de ficar sozinho. Era-lhe profundamente desagradável acordar a meio da noite ao lado de uma criatura estranha; o despertar matinal do casal causava-lhe repugnância; não tinha vontade nenhuma que o ouvissem a lavar os dentes na casa de banho e a intimidade do pequeno-almoço a dois não lhe dizia nada.
Qual não foi, pois, a sua surpresa quando, ao acordar, percebeu que Tereza lhe agarrava a mão com toda a força! Olhava para ela sem conseguir perceber o que lhe tinha acontecido. Recordando as últimas horas, parecia-lhe que se desprendia delas o perfume de uma felicidade desconhecida. A partir de então, ambos sentiam antecipadamente um grande prazer na partilha do sono. Sinto-me quase tentado a dizer que o que procuravam no acto sexual não era a volúpia mas o sono que se lhe segue. Sobretudo Tereza não podia dormir sem Tomás. Se ficava sozinha no estúdio (que era cada vez mais um mero álibi), não conseguia pregar olho toda a noite. Mesmo presa da maior agitação, nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomás contava-lhe em voz baixa contos que inventava só para ela, pequenos nadas, coisas tranquilizantes ou divertidas que ia repetindo num tom monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavam-se em visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomás tinha um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre no exacto segundo que ele escolhera para isso.
Quando estavam a dormir, ela agarrava-o como na primeira noite: segurava-lhe com toda a força no pulso, num dedo ou no tornozelo. Quando Tomás queria afastar-se sem que ela acordasse, tinha de valer-se de uma artimanha. Desprendia o dedo (o pulso, o tornozelo), o que a fazia ficar meio acordada porque mesmo a dormir o vigiava atentamente. Para a acalmar, em vez do pulso, metia-lhe na mão um objecto qualquer (um pijama enrolado, uma pantufa, um livro) que ela passava a segurar com toda a força como se fosse uma parte do seu corpo. Uma noite, acabara de a adormecer e Tereza encontrava-se naquela antecâmara do primeiro sono de onde ainda lhe podia dar resposta. Disse-lhe: bom! Agora vou-me embora. Para onde?, perguntou ela. Vou sair, respondeu com uma voz severa. Vou contigo!, disse ela, pondo-se de pé em cima da cama. Não, eu não quero. Vou-me embora e nunca mais volto', disse ele, saindo do quarto e passando para a entrada. Tereza levantou-se e seguiu-o até à entrada com os olhos a piscar. Só tinha vestida uma camisa muito curta. Tinha o rosto imóvel, sem expressão, mas o corpo movimentava-se energicamente. Saiu de casa e fechou-lhe a porta na cara. Tereza abriu-a com um gesto brusco e seguiu-o, ainda meio a dormir, convencida que Tomás queria ir-se embora para não voltar e que tinha de retê-lo. Desceu um andar, parou no patamar e esperou por ela. Tereza foi ter com ele, agarrou-o pela mão e levou-o para a cama, para o pé dela. Tomás pensava consigo próprio que ir para a cama com uma mulher e dormir com ela são duas paixões não só diferentes como quase contraditórias. O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor (desejo que se aplica a um número incontável de mulheres), mas através do desejo de partilhar o sono (desejo que só se sente por uma única mulher)». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.

Cortesia PdonQuixote/JDACT