sábado, 22 de setembro de 2018

Portugal. A Primeira Nação. Freddy Silva. «Tão generoso foi Pedro, O Eremita, para os pobres e tão honrado pela sua grande devoção que até os pêlos da sua mula eram arrancados como relíquias sagradas»

jdact

1095. Novembro. em Auvergne, uma região montanhosa no centro de França...
«(…) Simeão dificilmente poderia recusar tal oferta, sobretudo devido às referências de carácter de Pedro. O seu contemporâneo Guiberto Nogent disse sobre ele:

O seu exterior não deixava senão uma impressão muito pobre; mas poderes superiores agitavam este corpo miserável; tinha um intelecto rápido e um olhar penetrante, e falava com facilidade e fluência. Vimo-lo daquela vez rebuscar cidades e vilas, e pregando em toda a parte; as pessoas reuniam-se à sua volta, cobriam-no de presentes e celebravam a sua santidade com tão grandes louvores que não me lembro de uma honra assim alguma vez ter sido prestada a qualquer outra pessoa. Exibiu grande generosidade na disposição de todas as coisas que lhe eram dadas. Devolveu esposas aos maridos, não sem o acréscimo de presentes seus, e restabeleceu, com maravilhosa autoridade, a paz e o bom entendimento entre os que estava em discórdia. Em tudo o que fez ou disse parecia ter em si algo divino.

Tão generoso foi Pedro, O Eremita, para os pobres e tão honrado pela sua grande devoção que até os pêlos da sua mula eram arrancados como relíquias sagradas. Encorajado pelo entusiasmo de Pedro, Simeão aceitou a oferta do peregrino e entregou-lhe algumas cartas antes da sua partida. Pedro, com túnica de lã e manto de sarja, de braços nus e pés descalços, conseguiu encontrar-se com Urbano II em Roma e entregou--lhe as cartas de Simeão discutindo a terrível situação na Terra Santa. Isto foi apenas o início do seu esforço de recrutamento ao longo do árduo caminho de volta às terras francesas. Anos de pregação errante, enquanto vivia apenas com um pouco de pão, vinho e algum peixe, finalmente compensaram, e, nesta fria tarde de Novembro em Clermont, Pedro erguia-se numa robusta plataforma de madeira ao lado de Urbano II. O frágil eremita falou primeiro, o seu esqueleto e pele precariamente sustentados pelo seu zelo, mas, ainda assim, falou ao espaço aberto, coberto por um interminável exército desorganizado de seguidores, que ele persuadira a marchar sobre a Terra Santa. Guiberto de Nogent comentaria que Pedro se parecia muito com o seu burro e cheirava consideravelmente pior. Pedro partilhou com a multidão as torturas, tribulações, misérias e humilhações sofridas pelos peregrinos cristãos, ele incluído, às mãos dos turcos. Deus o quer, Deus o quer.
Restava pouco para Urbano II alimentar o fervor da multidão, além de um discurso obviamente demasiado patriótico coroado por uma singular proposição de venda: tomai, então, a estrada para Jerusalém para remissão dos vossos pecados, e parti com a certeza da glória imperecível que vos aguarda no reino dos céus. Deus o quer, Deus o quer. Ébrios de esperança e religião, é dúbio que poucos tenham ficado para trás, sob chuvisco gélido, para ouvir a data coordenada de partida para toda a cruzada, que devia ser liderada por cavaleiros e começar em Agosto seguinte, na Festa da Assunção. Ou sequer para assimilar a última parte do discurso de Urbano, pedindo contenção: não ordenamos nem aconselhamos que a viagem seja empreendida pelos velhos ou pelos fracos, ou pelos que não estão aptos para as armas, e não deixeis as mulheres partir sem os maridos ou os irmãos... e nenhum leigo deverá começar a marcha excepto com a bênção do seu pastor.
Mas em tempos caracterizados por uma economia baseada no saque, a promessa de uma remissão dos pecados e da glória do reino dos céus foi suficiente para incitar três exércitos, combinando uns cento e vinte mil camponeses mal equipados. Mal a neve do Inverno foi substituída pela Primavera, em Março de 1096, a Europa Central tornou-se num longo, mal preparado e desorganizado enxame de homens, mulheres, crianças, agricultores, até enfermos, marchando em três, por vezes cinco exércitos de pessoal não militar. Pedro, o Eremita, chefiava um. Um segundo era liderado por outra personagem excêntrica, um antigo senhor da Île-de-France que, tal como Pedro, buscava uma verdadeira experiência mística de Deus, e assim renunciou aos seus bens terrenos para marchar para Jerusalém. Ficaria conhecido como Gualtério Sem-Haveres.
Esta foi a Cruzada do Povo.
Ao longo da extenuante estrada para leste rumo a Constantinopla, muitos perguntavam desesperadamente ao chegar a cada nova aldeia: isto é Jerusalém?» In Freddy Silva, Portugal, a Primeira Nação Templária, 2017, Alma dos Livros, 2018, ISBN 978-989-890-700-4.

Cortesia de AlmadosLivros/JDACT