quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Maria Graça Ventura. «João III deu posteriormente instruções ao seu embaixador em Paris para que diligenciasse no sentido de requerer a punição de Angoulême, por ter transmitido uma versão deturpada das negociações e ter ocultado a cópia do auto que então se redigira»

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A disputa luso-francesa pelo domínio do Brasil até 1580
Jorge Couto
«(…) A existência de uma Casa de Valois relativamente poderosa no plano das forças terrestres tinha para a estratégia lusitana a vantagem de constituir uma ameaça latente à segurança das fronteiras imperiais, contribuindo, desse modo, para aliviar excessivas pressões espanholas sobre o Império Português, sobretudo numa conjuntura em que os contenciosos sobre as ilhas Molucas e a bacia platina se encontravam por solucionar. Daí que, apesar dos renhidos combates que se travaram entre portugueses e franceses no Atlântico e no Brasil, as duas monarquias tenham optado por nunca romper abertamente as hostilidades no âmbito europeu, já que receavam o imenso poderio territorial, económico e militar acumulado pelo imperador, bem como os prejuízos económicos que um total corte de relações acarretaria a ambos os reinos.
A França desejava continuar a exportar as suas produções para o espaço imperial português e a abastecer-se de mercadorias orientais em Lisboa. Portugal, por seu turno, pretendia que os súbditos de Francisco I não atacassem os navios que efectuavam as ligações com a feitoria da Flandres e que obrigatoriamente tinham de costear a região atlântica gaulesa. As informações provenientes de França de que uma armada de dez navios se aprestava para zarpar com destino ao Brasil levaram João III a investir Cristóvão Jaques nas funções de Governador das partes do Brasil, confiando-lhe a chefia de uma forte esquadra, formada por uma nau e quatro caravelas comandadas por experimentados capitães, designadamente Diogo Leite, Gonçalo Leite e Gaspar Correia, com a missão de aprisionar todas as embarcações estrangeiras que encontrasse na costa brasílica.
Os navios partiram de Lisboa, provavelmente no mês de Fevereiro de 1527, atingindo a feitoria de Pernambuco em finais de Abril ou inícios de Maio. Jaques tomou, então, conhecimento do ataque à nau San Gabriel, capitaneada por Rodrigo de Acuña, que se encontrava em reparação na embocadura do rio de São Francisco, perpetrado, no final de Outubro de 1526, por três navios franceses. Depois de ter mandado carregar a nau-capitânia de pau-brasil e de a despachar para Portugal com relatórios para o rei, Jaques decidiu empreender a busca das embarcações intrusas rumo ao Sul. Possivelmente em Julho, a esquadra lusitana surpreendeu, na Bahia, três naus bretoas. Após duro combate, foram afundados dois dos navios, apresado um terceiro e recuperada uma caravela portuguesa que havia sido capturada pela derrotada frota gaulesa. As tripulações francesas fugiram ou renderam-se, os pilotos e alguns membros da equipagem foram executados, tendo sido feito grande número de prisioneiros. Este grau de violência foi intencionalmente utilizado com o objectivo de dissuadir os mercadores normandos e bretões de continuarem a financiar o envio de navios ao Brasil, explicando-se ainda pelo facto de os comandantes das embarcações serem responsáveis pelo assalto do navio português destinado à Mina e pela morte de muitos dos seus tripulantes. Em Maio de 1528, o capitão-mor mandou regressar a caravela de Gonçalo Leite com uma remessa de pau-brasil e com cartas para João III. No final do ano, a armada de Jaques foi substituída por uma esquadra comandada por António Ribeiro que a 2 de Novembro já se encontrava em Pernambuco.
Os armadores dos navios franceses recorreram inicialmente ao conde de Lavall, lugar-tenente régio no ducado da Bretanha, e, posteriormente, ao próprio soberano no sentido de pressionar o rei de Portugal a compensá-los dos elevados prejuízos materiais e humanos provocados pela armada lusitana. Por carta-patente de 6 de Setembro de 1528, Francisco I cometeu ao rei de armas do título de Angoulême a incumbência de exigir ao governo de Lisboa uma indemnizaçáo no valor de 60 000 escudos para os seus súbditos bretões (Ivo Coadqungar, Francisco Guéret, Maturino Tournemouche, João Bureau e João Jamet), sob pena de mandar passar cartas de marca e represália contra os bens, navios e mercadorias dos portugueses até ressarcir integralmente aqueles homens de negócios das perdas sofridas.
O emissário do rei de França chegou à capital portuguesa a 18 de Janeiro de 1529, sendo.prontamente recebido por João III. Existem duas versões contraditórias sobre a forma como decorreram as negociações encetadas por Helies Allesgle na corte de Lisboa. O representante de Francisco I, através de um memorial datado de 3 de Julho desse ano, informou o seu soberano de que perïnanecera nove semanas na capital portuguesa sem que tivessem sido satisfeitas as reivindicações apresentadas, tendo-lhe o doutor Diogo Gouveia Sénior, um dos mais influentes conselheiros régios, retirado quaisquer esperanças na obtenção de sucesso para a sua missão. Todavia, aquele humanista ter-se-ia limitado a transmitir as deliberações oficiais, perfilhando a opinião de que se deveria proceder à libertação dos bretões para permitir o apuramento da verdade e o castigo dos franceses que afirmavam terem os homens de Cristóvão Jaques supliciado os prisioneiros.
O monarca lusitano comunicou a João da Silveira ter sugerido ao enviado francês que os queixosos recorressem aos tribunais portugueses que apreciariam o caso. O monarca João III deu posteriormente instruções ao seu embaixador em Paris para que diligenciasse no sentido de requerer a punição de Angoulême, por ter transmitido uma versão deturpada das negociações e ter ocultado a cópia do auto que então se redigira». In Jorge Couto, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura, Edições Colibri, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-21-2.

Cortesia de Colibri/JDACT