A disputa luso-francesa pelo domínio do Brasil até 1580
Jorge Couto
«(…) A existência de uma Casa de Valois relativamente poderosa no plano
das forças terrestres tinha para a estratégia lusitana a vantagem de constituir
uma ameaça latente à segurança das fronteiras imperiais, contribuindo, desse
modo, para aliviar excessivas pressões espanholas sobre o Império Português,
sobretudo numa conjuntura em que os contenciosos sobre as ilhas Molucas e a
bacia platina se encontravam por solucionar. Daí que, apesar dos renhidos
combates que se travaram entre portugueses e franceses no Atlântico e no
Brasil, as duas monarquias tenham optado por nunca romper abertamente as
hostilidades no âmbito europeu, já que receavam o imenso poderio territorial,
económico e militar acumulado pelo imperador, bem como os prejuízos económicos
que um total corte de relações acarretaria a ambos os reinos.
A França desejava continuar a exportar as suas produções para o espaço
imperial português e a abastecer-se de mercadorias orientais em Lisboa. Portugal,
por seu turno, pretendia que os súbditos de Francisco I não atacassem os navios
que efectuavam as ligações com a feitoria da Flandres e que obrigatoriamente
tinham de costear a região atlântica gaulesa. As informações provenientes de
França de que uma armada de dez navios se aprestava para zarpar com destino ao
Brasil levaram João III a investir Cristóvão Jaques nas funções de Governador
das partes do Brasil, confiando-lhe a chefia de uma forte esquadra, formada por
uma nau e quatro caravelas comandadas por experimentados capitães, designadamente
Diogo Leite, Gonçalo Leite e Gaspar Correia, com a missão de aprisionar todas
as embarcações estrangeiras que encontrasse na costa brasílica.
Os navios partiram de Lisboa, provavelmente no mês de Fevereiro de 1527,
atingindo a feitoria de Pernambuco em finais de Abril ou inícios de Maio.
Jaques tomou, então, conhecimento do ataque à nau San Gabriel, capitaneada por
Rodrigo de Acuña, que se encontrava em reparação na embocadura do rio de São
Francisco, perpetrado, no final de Outubro de 1526, por três navios franceses. Depois
de ter mandado carregar a nau-capitânia de pau-brasil e de a despachar para
Portugal com relatórios para o rei, Jaques decidiu empreender a busca das
embarcações intrusas rumo ao Sul. Possivelmente em Julho, a esquadra lusitana
surpreendeu, na Bahia, três naus bretoas. Após duro combate, foram afundados
dois dos navios, apresado um terceiro e recuperada uma caravela portuguesa que
havia sido capturada pela derrotada frota gaulesa. As tripulações francesas
fugiram ou renderam-se, os pilotos e alguns membros da equipagem foram executados,
tendo sido feito grande número de prisioneiros. Este grau de violência foi
intencionalmente utilizado com o objectivo de dissuadir os mercadores normandos
e bretões de continuarem a financiar o envio de navios ao Brasil, explicando-se
ainda pelo facto de os comandantes das embarcações serem responsáveis pelo
assalto do navio português destinado à Mina e pela morte de muitos dos seus
tripulantes. Em Maio de 1528, o capitão-mor mandou regressar a caravela de Gonçalo
Leite com uma remessa de pau-brasil e com cartas para João III. No final do
ano, a armada de Jaques foi substituída por uma esquadra comandada por António
Ribeiro que a 2 de Novembro já se encontrava em Pernambuco.
Os armadores dos navios franceses recorreram inicialmente ao conde de
Lavall, lugar-tenente régio no ducado da Bretanha, e, posteriormente, ao
próprio soberano no sentido de pressionar o rei de Portugal a compensá-los dos
elevados prejuízos materiais e humanos provocados pela armada lusitana. Por
carta-patente de 6 de Setembro de 1528, Francisco I cometeu ao rei de armas do
título de Angoulême a incumbência de exigir ao governo de Lisboa uma
indemnizaçáo no valor de 60 000 escudos para os seus súbditos bretões (Ivo
Coadqungar, Francisco Guéret, Maturino Tournemouche, João Bureau e João Jamet),
sob pena de mandar passar cartas de marca e represália contra os bens, navios e
mercadorias dos portugueses até ressarcir integralmente aqueles homens de
negócios das perdas sofridas.
O emissário do rei de França chegou à capital portuguesa a 18 de Janeiro
de 1529, sendo.prontamente recebido por João III. Existem duas versões
contraditórias sobre a forma como decorreram as negociações encetadas por
Helies Allesgle na corte de Lisboa. O representante de Francisco I, através de
um memorial datado de 3 de Julho desse ano, informou o seu soberano de que
perïnanecera nove semanas na capital portuguesa sem que tivessem sido satisfeitas
as reivindicações apresentadas, tendo-lhe o doutor Diogo Gouveia Sénior, um dos
mais influentes conselheiros régios, retirado quaisquer esperanças na obtenção
de sucesso para a sua missão. Todavia, aquele humanista ter-se-ia limitado a transmitir
as deliberações oficiais, perfilhando a opinião de que se deveria proceder à
libertação dos bretões para permitir o apuramento da verdade e o castigo dos
franceses que afirmavam terem os homens de Cristóvão Jaques supliciado os
prisioneiros.
O monarca lusitano comunicou a João da Silveira ter sugerido ao enviado
francês que os queixosos recorressem aos tribunais portugueses que apreciariam
o caso. O monarca João III deu posteriormente instruções ao seu embaixador em
Paris para que diligenciasse no sentido de requerer a punição de Angoulême, por
ter transmitido uma versão deturpada das negociações e ter ocultado a cópia do
auto que então se redigira». In Jorge Couto, Viagens e Viajantes no
Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura, Edições Colibri,
Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-21-2.
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