São
Francisco
«(…) Depois de
vários minutos de conversa, olhou para mim com ar muito sério. Não estás
integrada aqui. Queres ir-te embora de ti mesma. Eu sinto. Estás tensa. Ele
ajoelhou-se e começou a fazer um desenho na areia. Duas circunferências. Uma
pequena e outra bastante maior. Ambas separadas por alguma distância. Aqui é
onde tu estás. Esta é a tua zona de segurança, disse, fazendo uma seta que
apontava para o círculo mais pequeno. Mas a verdadeira magia acontece aqui,
disse, apontando para a circunferência maior. Aproveita a vida. Não sei se o
que ele disse foi o que me levou a não procurar uma boleia para regressar mas,
como já sabem, acabei por ficar. Demorei muito a convencer a Jen. Talvez tenha
ajudado estarmos rodeadas por homens em tronco nu. Dos giros. Tivemos o cuidado
de encontrar a única zona do Burning Man com Internet e enviámos um mail ao pai
da Jen a dizer que tinha acontecido um imprevisto e que só conseguiríamos
começar a trabalhar na semana seguinte, após o labor day. Agora sim. Ia
aproveitar o Burning Man.
Ao regressar à
nossa carrinha, passei por um theme camp chamado Ashram. Assim que soube quem
era o organizador, todo o meu corpo começou a sorrir. Não um sorriso de sitcom,
mas um sorriso de adolescente histérica. O organizador de campo era o Chris
Weitz, realizador do filme Twilight, New Moon. Não se riam. É o meu guilty
pleasure. A minha cabeça transformou-se num noticiário com um ticker na parte
de baixo que apenas dizia: Breaking News: será que o Robert Pattison está aqui?
Será que o Robert Pattison está aqui? Vou já estragar a surpresa. Não estava. Mas
como na altura não sabia isso, fui de imediato buscar a Jen. Não foi bem de
imediato porque me perdi várias vezes no meio daquela cidade gigantesca. Mas,
para efeitos dramáticos, fui de imediato buscá-la e ficámos lá dentro durante horas.
Nunca tinha visto nada assim. No meio do deserto, uma tenda gigante com vallet
para as bicicletas, mobília, quartos de hotel e até um musical da Broadway. A
partir daqui, e apesar de ter bebido pouco, a minha estada no Burning Man transformou-se
numa osmose de dias. Os meus neurónios nunca tinham recebido tanta informação,
e a realidade estava com delay de vários minutos, em fila, à espera para ser
processada.
Fomos a workshops
de dança do ventre; à Critical Tits, onde as mulheres em topless marchavam em
protesto, reivindicando o direito de puderem andar nuas; ao Center of Attention
Chair, onde nos sentávamos numa cadeira gigante com uma seta que dizia centro
das atenções. Para além de esculturas fabulosas espalhadas pela playa, havia
roupa decorativa e decorações à borla para as bicicletas. Eu e a Jen passámos o
tempo todo vestidas com umas asas, calções branco muito curtinhos e meias de
renda. A nossa realidade era saltar de veículo mutante em veículo mutante,
danças de fogo, dias temáticos como o Socially Appropriate Menstruation Day e
outras coisas estranhas que ainda hoje não compreendo para que serviam. Querem
um exemplo? Buffalo Bill Contest, onde se tinha de fazer a dança do filme O
Silêncio dos Inocentes. Lembram-se? O homem todo nu a fingir que era uma mulher?
Pela primeira vez na vida senti-me livre. Ninguém sabia onde eu estava. Ninguém
me podia contactar. Estava a reflectir, a experienciar e a sentir as coisas por
mim. Até que…, encontrei a minha alma gémea. Aliás, duas almas gémeas.
Estava num theme
Camp de dança chamado Distrikit, quando vi uma tenda com uma placa que dizia
Costco Soulmate Trading Outlet. Levitei e bati palmas muito contente. Alma
gémea, quem não quer encontrar a sua alma gémea? Entrei, olhei à volta e
esperei encontrar de imediato a minha alma gémea. Imaginei que iria ver um
sinal de néon a apontar para a cabeça dele, dizendo É esta a tua alma gémea.
Mas como não estava em Las Vegas, não havia néones. É aqui que vou encontrar a
minha alma gémea?, perguntei a um dos organizadores da tenda. Óbvio,
respondeu-me com ar indignado. Preenche este questionário e depois vai até
aquela mesa para seres entrevistada. É assim que vou encontrar a minha alma
gémea? A preencher um papel como se estivesse a preencher o IRS?, perguntou a Jen, indignada. Sim, ela estava
comigo. Ela andava sempre atrás de mim para onde quer que eu fosse. Os nossos
amigos estavam permanentemente bêbedos e ela tinha tido uma ressaca tão grande
em Reno, que não queria ouvir falar em bebida durante seis ou sete séculos.
Olhei para ela enquanto pensava no mesmo Isto não é nada
romântico. A Bela Adormecida estava a dormir e a sua alma gémea é que a encontrou.
Ela não teve de preencher papeis! Um tipo chamado Train fez-me a entrevista e
depois inseriu os dados num computador. Se era para fazer isto, podia ter usado
o Match.com. Odeio encontros por computador disse a Jen, na mesa ao lado da
minha. Não, disse o Train. Aqui, vocês vão encontrar a vossa alma gémea. Passado
um bocado, disse que eu me chamava Meloncita, que esse era o meu nome
espiritual. E o da Jen, Ginjita. Olhámos uma para a outra e rimos. Muito.
Daqueles risos que podem provocar soluços. Yup, demasiado hippie para o nosso
gosto». In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora
Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
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