segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Decifração em Textos Medievais. Apertio Libri. Arnaldo Espírito Santo. «É-lhe conferida uma dignidade e uma sublimidade que ultrapassa a simples interpretação de um texto. Por trás disso, está a leitura do plano de Deus, sobre o sentido da vida humana, do drama da história»

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Conferências. Decifração
«(…) Mas voltemos ao texto de S. Jerónimo. Epidémio, quando chegou a Belém da Judeia, entregou a Jerónimo, que aí fazia vida monástica, um rol de perguntas ou questões que lhe eram trazidas da parte de Algásia. E a alegorização do texto prossegue. Ao ler o bilhete, Jerónimo vê nas questões de Algásia um sinal de que nela se realizam de uma forma completa o interesse pela sabedoria que trouxera a Rainha de Sabá dos confins do mundo para ouvir a sabedoria de Salomão. E configura-se a seguinte isotopia per allegoriam: Jerónimo igual a Salomão, e Algásia igual à Rainha de Sabá. Mas ele não se considera à altura de Salomão, pois que nem antes nem depois houve homem que o superasse em sabedoria. Mas ela, sim, ela, Algásia, é uma verdadeira Rainha de Sabá, ela em cujo corpo domina o pecado e cujo espírito está inteiramente convertido a Deus, porque é isso que na língua latina significa Saba, a saber, conversão.
Estamos, pois, em presença de um de muitos exemplos de escrita alegorizante. Não se trata, na maior parte dos casos, do uso das técnicas retóricas da Antiguidade com o recurso à metáfora, à metonímia, ao símile e a toda a panóplia de tropos e figuras. Isso também existe em Jerónimo. Mas é mais que isso, é um desdobrar permanente de um significado em vários significados de realidades que estão a outro nível, no texto e além do texto. Não se trata apenas de uma isotopia coerente que remete termo a termo, metaforicamente, para um universo referencial de outra natureza. Trata-se, sim, de um discurso cujo significado é aberto porque se entra nele com a chave de decifração que é o alfa que estava no princípio e o ómega que estava no fim. Faço uma pergunta: acaso quem assim escreve, embrenhado nas florestas do significado, poderá seguir outro caminho na interpretação do texto que não seja per allegoriam? De certo que não. Aliás, a resposta está neste riquíssimo proémio da Epístola a Algásia, no qual, após uma análise preliminar das questões que lhe são propostas, Jerónimo faz de imediato o diagnóstico: dei-me conta de que as tuas questõezinhas dizem respeito apenas ao Evangelho e aos Apóstolos. Isso quer dizer que quanto ao Velho Testamento, ou não o leste bastante, ou não o entendeste. E porquê? A resposta é dada por Jerónimo: primeiro, porque o Velho Testamento está cheio de obscuridades; segundo porque está envolto em prefigurações do futuro; assim sendo, todo ele necessita de interpretação.
Em resumo, o que diz Jerónimo é que a questão não está em legere mas em legere satis e, mais ainda, em intellegere, ou seja, não está em ler, mas em ler bem e entreler ou ler entre: ler entre as obscuridades de um texto de outras épocas, por vezes de transmissão corrompida, e principalmente entre as obscuridades de sentido decorrentes do próprio mistério nele contido e da prefiguração futura escondida sob a capa dos acontecimentos presentes. O que é quase o mesmo que dizer: não é possível ler senão perspectivando o presente na mira do futuro, recorrendo para isso à interpretação per allegorian. Não há outra forma de passar do nível da lectio ao do intellectus, da lição ao da intelecção.
Há uma lei essencial da alegoria que vários autores repetem e que S. Jerónimo formula da seguinte maneira: a porta oriental do Templo, da qual surge a verdadeira luz e pela qual entra e sai o sumo-sacerdote, está sempre fechada, e só se abre a Cristo que tem a chave de David, que abre e ninguém fecha: fecha e ninguém abre. Nesta simples frase, com toda a beleza poética e majestade bíblica, Jerónimo, por uma série de referências em cadeia que passam pelo Profeta Ezequiel, pelo Apocalipse e pelo Cântico dos Cânticos, Jerónimo, digo, repete um princípio que, como já referimos, se encontra no comentário ao Apocalipse de Vitorino de Petau: a chave do Antigo Testamento é o próprio Cristo. A interpretação alegórica, ou simplesmente o comentário bíblico medieval é, deste modo, como que assimilado aos passos da tradição bíblica em que se fala da apertio tibrí. É-lhe conferida uma dignidade e uma sublimidade que ultrapassa a simples interpretação de um texto. Por trás disso, está a leitura do plano de Deus, sobre o sentido da vida humana, do drama da história, da criação e do universo. Mas por Ser uma tarefa grandiosa reservada a santos varões de reconhecida idoneidade, e atentamente vigiada pela Igreja para assegurar a sua ortodoxia, criou desde cedo uma certa padronização». In Arnaldo Espírito Santo, Da Decifração em Textos Medievais, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT