quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A Duquesa de Bragança. Poema em Oito Cantos. José Carlos Gouvêa. «Ante o mundo, a justiça proclamando, do paiz a concórdia, a paz futura, mandavam, que dobrasse o feudalismo as idéas, que nascem, fero orgulho»

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Canto Primeiro
O Regresso do Duque
«(…)
XI
Oh! contemplae, servis aduladores,
Um monarcha, que rende á natureza
O devido tributo! Favoritos,
Palaciana caterva, eia, conspirem,
Por ver o caso horrendo e sobrehumano!
O meigo rosto voltem, d’horror fujam
Por ver um rei, que chora e sacrifica
Nas aras da ternura e sentimento!
Correi, vinde pasmar d’este successo,
Expurgae d’essa nódoa o régio manto!
Pasmae, nobres vampiros, conhecendo
Que os monarchas são homens!... Quasi sempre
É bom seu coração : conselhos pérfidos,
O interesse, a vaidade, o fero orgulho,
Destroem muitas vezes taes virtudes
Que sós dariam gloria ás monarchias.
Se afastada a intriga o rei liberto
Por seus próprios impulsos se dirige
Quasi sempre se eleva e n’esse instante
Já renome adquire o seu reinado.
É a voz da justiça, a mão do Eterno,
Que os guia n’essas horas. Chega a sucia,
Então novas mentiras se succedem,
Malq’renças, despotismo, sangue, luctas.
Os abysmos, que os thronos devoraram,
A maldita voragem d’anarchia,
Foi obra dos validos, d’esses vermes,
Que o sepulchro cavaram dos impérios.

XII
Mas deixemos ai! Sim, misérias tantas,
Chimeras, que no seio a dor abrigam:
Deixemos; que no mundo a felicidade
É um sonho, uma estreita vaporosa,
Que um momento scintilla e foge rápida
Corramos pois um veu ao raciocinio,
E antes que importunos nos detenham,
Nos reaes aposentos penetremos.

XIII
A sós estão emfim o rei, e o duque:
Caprichoso contraste! O que na terra
O throno ao longe erguido olhara humilde,
E ante o sceptro tremendo vacillára;
O que ao ver ante si a vez primeira
O sólio, pensou ver o cadafalso,
Do duque seu irmão horrido tumulo;
Alli hoje sentado, ao mundo absorto
O sceptro das conquistas mostra impavido
Cingindo na cabeça a lusa c’rôa,
Que a seus olhos primeiro reluzira
Com o fulgor sinistro do cutelo!
E o outro, que tivera em régios paços
Dos validos cercado o áureo berço,
Ao abrigo da purpura e do solio:
Que inda infante se vira sem ter pátria,
Humilde hoje acolhendo um nobre indulto,
Que á terra de seus paes o trouxe provido!
Mundo, ó mundo que és tu? A humanidade
O que pode valer na immensa orbita?...
Perante a luz eterna do infinito
Qual fumo as gerações se vão erguendo,
Que o tempo no seu giro arrasta ao tumulo.
Avante, caminhar…, eis surge o abysmo,
Mas, cair é forçoso, novas gentes
Ao fundo nos impellem, nos arrastam.

XIV
Nem um som a mudez d’esse recinto
No silencio da noite perturbara.
Opprimidos estão por doce enleio,
Que o seu olhar inquieto a furto exprime;
Por fim do rei a voz o ecco accorda
Do rei que assim falou: O regio sangue,
Que vos corre nas veias, não me impunha
Um dever, que jamais tinha esquecido.
Mas que só me dictava a consciência:
Porque essa me accusava, que innocente.
No exilio mendigava um tenro joven
O ar, a luz, o sol, a terra q’rida.
Da pátria; da familia o doce aflecto,
Porque essa me dizia, que o meu throno
Direitos se arrogara, que eram vossos.
E agora vos direi longe a vaidade
O rápido esplendor, a queda subita
Dos duques de Bragança; e o regozijo
Que sinto por haver de novo erguido
Invejada harmonia em torno ao sólio.

XV
N’este reino existiu um vulto homérico,
Um nome dos mais q’ridos, d’este povo
Era filho do heroe da velha Ceuta,
O duque de Coimbra, Atroz perfidia
Lançou na sua gloria nódoa escura,
E a vida lhe roubou na lucta infrene.
Na historia do paiz sangrenta pagina
Inscreveu a nobreza em negra lapide.
Do duque de Bragança atroz inveja
A causa foi tão só; da nobre victima
O sangue maculou altivo escudo;
E para recobrar perdido lustre
Viu então erigir-se o cadafalso;
Cruenta expiação d’um crime horrendo.

XVI
Execrais do monarcha a ingente gloria?
Do príncipe perfeito a eterna fama?
Também eu vim chorar alli no tumulo
Do duque de Vizeu, do irmão q’rido.
Mas, condemnando sempre a forma barbara,
Que era justo o rigor pensado havia,
Imperiosa lei já condemnára
Da nobreza impossiveis privilégios;
A rectidão levou o rei meu primo
A erguer ante o solio dois sepulchros,
Ante o mundo, a justiça proclamando,
Do paiz a concórdia, a paz futura,
Mandavam, que dobrasse o feudalismo
As idéas, que nascem, fero orgulho
Mas hoje, que triumpha a nova epocha,
Que das luctas passou o rijo estrondo
Dos tempos que lá vão era importuna
A justiça, o rigor inexorável,
O throno ficaria deshonrado,
Se então não extinguisse das discórdias
O vulcão, que rugia pavoroso;
Mas agora p’ra sempre se aviltava,
Se acaso não ouvisse da innocencia
Gemidos, que nascendo em terra estranha,
Nos eccos reviviam dos meus paços».
In José Carlos Gouvêa, A Duquesa de Bragança. Poema em Oito Cantos, Tipographia e Stereotypia Moderna, Lisboa, 1898.

Cortesia de Stereotypia Moderna/JDACT