«(…) Fernando
odiava de tal forma a ideia de um Habsburgo vir a usar a sua coroa, que chegou
a declarar a sua intenção de voltar a desposar-se caso Isabel morresse. A fúria
cega de Felipe ainda a assustava e Joana tratou de esconder no fundo do
pensamento todas as recordações daquele dia. Marquês, achais que Felipe estava
simplesmente dando conhecimento prévio à rainha da nossa partida?
Imediatamente, como todos sabemos, pode envolver meses de preparação. É isso
que todos esperam. Tenho de usar algo muito especial para recebê-lo. Maria,
acho que o vestido de veludo roxo. Maria juntou a costura e preparava-se para
deixar a sala quando Felipe entrou violentamente, trazendo com ele uma onda
gelada de ar invernoso. Atirou ao chão a capa manchada de lama, o chapéu e as
luvas. Estendeu as mãos para o calor agradável do fogo, o rosto transformado
numa máscara tempestuosa. Não vão dizer-me o que posso ou não fazer, nem o que
devo ou não dizer. Acabaram-se os sermões. Felipe, meu amor, tendes frio e
estais cansado da viagem. Aquecei-vos, descansai um pouco, falaremos mais
tarde. Joana aproximou-se dele de braços estendidos. Meu querido amor. Ele
afastou rudemente os braços de Joana.
Falamos já. Vou-me
embora. No início, disse que regressaria a Flandres no espaço de um ano e
ninguém me vai dissuadir. É claro, meu amor, e concordo convosco, mas é óbvio
que temos de ser pacientes, temos de esperar um pouco... Ele agarrou a mão que
se aventurara a afagar-lhe a face. É óbvio, Senhora? Temos de esperar, Senhora?
Pretendeis igualmente passar-me um sermão? Felipe, permiti-me. Temos de esperar
até o nascimento do nosso filho, uma questão de semanas. Nessa altura,
estaremos no início da Primavera... Não vim aqui pedir a vossa opinião, assim
como não fui a Madrid em busca do conselho de Isabel. Nem ela nem mais ninguém
vai-me dizer para escolher entre Luís e a Espanha, nem ninguém me vai dizer
onde devo viver. Pretendo fazer o seguinte: partirei esta semana.
Querido, dizeis
isso apenas porque estais zangado, porque os meus pais vos perturbaram. Quando
tiverdes tempo para reconsiderar, meu amor, reconhecereis que... Estai calada,
pelo amor de Deus! E agora escutai e escutai bem. Odeio este país. Odeio este
povo. Odeio este tempo e só Deus sabe como odeio a comida. Mas pior, considero
os vossos pais as pessoas mais hipócritas que jamais conheci e recuso-me a ficar,
passando por um idiota ainda maior. Joana ficou chocada, consternada e, ao
mesmo tempo, ansiosa. Que mais podia dizer? Meu Senhor, tenho a certeza... Disse-vos
que vos calásseis! Calai-vos e sabei qual o vosso lugar! As palavras assobiavam
por entre os lábios semicerrados. Tenho de voltar a Flandres. Viajarei pela França.
Não há mais nada a dizer. Ir pela França seria... Ou não haveis ouvido ou sois
demasiado estúpida para compreender o que acabo de dizer. Olhai para mim e
escutai: vou partir da Espanha e darei início à viagem ainda esta semana. Mas,
Felipe, eu tenho de ficar cá, não posso viajar no meu estado. Esse, Senhora, é
um problema vosso, não meu. Felipe estava tão cego pela fúria que nem
considerou a possibilidade de Joana ter um filho e Isabel, dado o seu total desprezo
pelo arquiduque, nomear a criança como herdeira, negando-lhe, assim, quaisquer
direitos ao trono de Castela.
Assim que o bebé
nascer, partimos. Deixamos aqui a criança e viajamos por mar. Pretendo
atravessar a França para ver o rei Luís, para limpar o meu nome. A Espanha está
em guerra com a França. Irei como embaixador do vosso pai. Este jogo pode ser
jogado por dois. Negociarei a paz para Espanha, nos meus próprios termos, uma
nota oportuna de que nunca lhe perdoarei ter-me obrigado a presidir uma reunião
de preparação do seu exército contra os franceses. Então era verdade. Pretendia
mesmo ir e sozinho, deixando-a para trás. Joana não podia, não iria suportar. Vós?
Negociardes com Luís? Como um vassalo negocia com o seu amo? Do que observei,
iria limitar-vos a lamber-lhe as botas e a fungar a vossa concordância com tudo
o que ele exigisse. Que imagem sórdida da humilhação e do servilismo. Sua
perversa... Agarrou-lhe um dos pulsos com uma mão, enquanto lhe esbofeteava as
duas faces com a outra, atirando-a em seguida ao chão. Em grande pranto, Joana
rastejou até aos pés dele.
Que o diabo me leve
a língua, Felipe, se pretendia dizer aquilo. Perdoai-me. Oh, meu Deus, que fiz
eu? Felipe virou-se para Maria e Vilhena, as embaraçadas testemunhas. Olhai! É
esta a mulher que queriam fazer rainha, sendo eu apenas seu consorte. E fala
ela de servilismo! Joana sabia que, se ele fosse sem ela, perderia a esperança
que lhe restava de que ele lhe pertencesse, a ela e só a ela. Cairia nos braços
da primeira dama flamenga que encontrasse. Na Espanha, estivera protegida dos
seus namoros. Ali, as jovens eram frígidas, lamentara-se Felipe, não correspondendo
aos seus avanços amorosos. Uma vez em casa e sem a sua presença, estaria
perdida. Imploro-vos! Estais vendo-me de joelhos, implorando-vos. Por favor,
Felipe, não me abandoneis. Ele olhou para ela, para aquele rosto manchado de lágrimas,
feio e inchado, com as marcas inflamadas dos seus dedos nas faces. Joana
choramingou, numa derrota abjecta, agarrando-se às suas botas. Não ficais para
o Natal? Dais-me nojo!, disparou ele, soltando-se com um pontapé». In Linda
Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa,
2009, ISBN 978-972-234-231-5.
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