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Independência
«(…) Olhavam-no expectantes. Afonso mantinha a pose, mas
sentia-se fraquejar por dentro. Apesar da presença incomodativa de Fernão
Peres, não pensara seriamente em contestar o poder da sua mãe. Estes senhores
pareciam, porém, estar à espera que ele agisse contra ela. Por Deus, não
haveria outra solução? Haveria de tornar a ir a Coimbra, entender-se-ia com sua
mãe... Ou não? Assim que se viu livre dos senhores, o jovem dirigiu-se ao
túmulo do pai, o conde Henrique, na Sé de Braga. Ajoelhou-se e, como estava
sozinho, deu livre curso às suas lágrimas, atacado por angústias que julgara
olvidadas. Sentia a mesma solidão de há dez anos atrás, quando soube da morte
do conde. Porque me deixastes, meu pai?, perguntou, num soluço. Um sussurrar,
como o de um manto a deslizar pelo chão de pedra, deu-lhe a entender que alguém
se aproximava. Apressou-se a limpar as lágrimas. Mas, ao olhar em volta, não
viu vivalma. E, no entanto, sentia uma presença tão forte junto dele... Tornou
a fixar o túmulo. O seu braço foi-se estendendo devagar, como se alguma força o
atraísse. Assim que as pontas dos seus dedos tocaram a pedra que cobria o
sepulcro, pareceu-lhe ouvir a voz do pai: não te deixei, meu filho. Nem nunca
te deixarei!
Afonso tentava ganhar tempo e apaziguar os ânimos dos
barões portucalenses, com idas regulares a Coimbra, onde se esforçava por se
imiscuir nos meandros da corte. Confirmava documentos, forais e cartas de
couto, pondo a sua assinatura ao lado da de Fernão Peres. Mas, três anos mais
tarde, a paciência dos senhores parecia esgotar-se e verificavam-se novas
deserções: os senhores da Silva, de Lanhoso, de Azevedo, de Marnel e de Palmeira,
assim como os Ramirões, os Guedões e os Velhos. Entre a alta nobreza, e além
dos Trava, restava a dona Teresa o apoio de dois barões. Gomes Nunes, casado
com Elvira Peres Trava, irmã de Fernão Peres, era um dos irmãos do conde Afonso
Nunes Celanova, a família galega que possuía vastos domínios portucalenses. Além
de ser senhor de Toroño, província que tinha o seu centro na cidade de Tui,
Gomes Nunes era governador do castelo de São Cristóvão, na margem esquerda do
rio Corgo. Como cunhado de Fernão Peres, mantinha-se-lhe fiel, apesar de o
irmão Sancho Nunes, senhor da terra de Ponte de Lima, ter acompanhado, logo na
primeira vaga de deserções, os ricos-homens de Entre Douro e Minho à residência
do arcebispo de Braga.
Egas Gosendes, o senhor de Baião, exercia as funções de
mordomo-mor de dona Teresa, o que o punha em terceiro lugar na hierarquia da
corte, logo a seguir ao par regente. Teresa continuava ambígua em relação ao
filho, como que cega às dificuldades que Afonso teria em suceder ao pai (e a ela
própria), estando Fernão Peres Trava instalado no poder. Além disso, tivera uma
filha. O que aconteceria se ela ainda desse à luz um varão de Fernão Peres? A
situação tornava-se insustentável para Afonso. Numa tarde soalheira de Março, o
jovem, prestes a completar dezoito anos, disputava um torneio com os seus
companheiros, num descampado, perto do castelo de Guimarães. Praticavam o uso da lança sobre mão. Mantendo-a firme com o
antebraço, tentavam derrubar-se uns aos outros das suas montadas. Protegiam o
corpo com os lorigões, por baixo dos quais usavam vestes acolchoadas e
reforçadas por tiras de cabedal. O treino foi interrompido por um moço de
estrebaria ofegante, que anunciava a chegada de visitas ilustres: a própria rainha dona Teresa, acompanhada de Fernão Peres e
do seu séquito. Afonso franziu o sobrolho. Sua mãe nunca o visitava. Deixou os
companheiros e dirigiu-se ao castelo, onde deu com os recém-chegados a
retemperarem-se da viagem. Bebia-se vinho misturado com água e comia-se peixe
frito frio sobre fatias de pão, pois, em tempo de abstinência da Quaresma, a
carne não era autorizada. Afonso tirou o elmo e puxou o almofre e a coifa para
trás. Teresa sorriu-lhe, levantando-se, o que ainda o surpreendeu mais. O jovem
admirou-lhe, como sempre, a aparência. O passar dos quarenta não havia apagado
a sua beleza.
A mantilha branca, debruada a fio dourado e cingida por um
aro de ouro, chegava-lhe aos ombros, mas os caracóis escuros caíam-lhe em
cascata até à cinta ainda delgada, que um cinto enfeitado com placas douradas
envolvia, por sobre o bliaut verde-escuro. Afonso deu consigo a pensar
que não era de admirar que Fernão Peres ainda se sentisse atraído por ela,
apesar de mais novo. E logo se amaldiçoou por lhe ocorrerem tais pensamentos.
Levou a mão à testa, embaraçado, e tentou dar um jeito aos cabelos colados à
cabeça. Depois dos cumprimentos, dona Teresa anunciou: vamos a caminho de
Zamora. E havia mister de fazer tão grande desvio? Viemos buscar-te. A mim? Que
se passa em Zamora de tão importante, que exija a minha presença? Serás lá
armado cavaleiro! Afonso quedou-se estupefacto. Já se falava na sua
investidura, que estaria para breve. Mas surpreendia-o que sua mãe tomasse a
iniciativa. Assim, de repente? E porquê em Zamora? Porque eu assim o resolvi.
Encarou-a irritado, mas ela prosseguiu, impassível: o corpo
da tua tia Urraca ainda nem teve tempo de arrefecer na sepultura, já o teu
primo Afonso Raimundes foi coroado rei de Leão e Castela. Tenho um encontro
marcado com ele, no lugar de Ricobayo, perto de Zamora. A que propósito? Fernão
Peres, ainda sentado à mesa, achou por bem fazer-se ouvir: o recém-coroado
el-rei Afonso VII exige a homenagem dos principais senhores dos seus reinos. Alguns
já lha prestaram, na cidade de Leão. Ignorando o nobre galego, Afonso
dirigiu-se à mãe: e que tenho eu a ver com isso? Sabes que sempre me recusei a
aceitar minha irmã Urraca como única herdeira de meu pai e continuo a reclamar
a Galiza como parte da minha herança». In
Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN
978-989-809-249-6.
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