«(…) Estava
tudo pronto desde o dia anterior. Os sinos tocaram para anunciar a toda a gente
que iam fazer mais uma desgraçada. O meu coração bateu com mais força. Vieram
enfeitar-me, pois este é um dia de cerimónia. Agora, que recordo todo este
aparato, parece-me que tinha algo de solene e comovedor para uma jovem inocente
sem outras inclinações. Conduziram-me à igreja. Foi celebrada a santa missa. O
bom vigário supunha em mim uma resignação que eu não tinha e dedicou-me um
sermão em que cada palavra era um contra-senso; era ridículo tudo o que dizia
da minha felicidade, da graça, da minha firmeza, do meu zelo, do meu fervor e
de todos os sentimentos bonitos que supunha que fossem os meus. Perturbou-me o
contraste entre o seu elogio e o passo que eu ia dar; tive momentos de
incerteza, mas duraram pouco. Compreendi melhor do que nunca que não tinha
nenhuma das qualidades necessárias para ser uma boa religiosa. Entretanto,
chegou o momento terrível. Quando tive de entrar no lugar onde devia pronunciar
os votos do meu compromisso, não sentia as pernas. Duas das minhas companheiras
seguravam-me pelos braços e, com a cabeça caída sobre uma delas, arrastei-me
como pude. Não sei o que sentiram as pessoas que assistiam, ao verem uma jovem
vítima moribunda a ser levada ao altar; mas de todo o lado escapavam suspiros e
soluços, entre os quais, tenho a certeza, os dos meus pais não se fizeram
ouvir. Estava toda a gente em pé; havia jovens em cima das cadeiras e agarrados
às barras da grade. Fez-se um silêncio profundo quando o padre que presidia à
minha profissão me disse: Maria Susana Simonin, promete dizer a verdade? Prometo.
Está aqui por sua própria e livre vontade? Eu respondi: Não; mas as que me
acompanhavam responderam por mim: Sim. Maria Susana Simonin, promete a Deus castidade,
pobreza e obediência? Duvidei um momento; o padre estava à espera e eu
respondi: Não, senhor. Ele repetiu: Maria Susana Simonin, promete a Deus castidade,
pobreza e obediência? Respondi-lhe com a voz mais firme: Não, senhor, não. Deteve-se
e disse-me: Tranquilize-se, minha filha, e oiça-me. Senhor, disse-lhe eu, perguntou-me
se prometo a Deus castidade, pobreza e obediência; compreendi-o bem e
respondi-lhe que não. E, voltando-me para a assistência, entre a qual se
elevava um enorme borburinho, avisei que desejava falar. Os murmúrios pararam e
eu disse: Senhores, e em especial meu pai e minha mãe, tomo-os por
testemunhas... Ditas estas palavras, uma das irmãs deixou cair o véu da grade e
vi que era inútil continuar. Fui rodeada pelas religiosas que me encheram de
reprovações; ouvi-as sem dizer palavra. Conduziram-me à minha cela e
fecharam-me à chave.
Ali,
sozinha e entregue às minhas reflexões, comecei a tranquilizar o espírito.
Reflecti sobre a minha decisão e não me arrependi dela. Compreendi que, depois
do escândalo que tinha feito, era impossível ficar ali muito tempo e que,
talvez, não ousassem levar-me para outro convento. Não sabia o que fariam
comigo, mas não havia nada pior do que ser religiosa contra a própria vontade.
Fiquei assim muito tempo, sem saber o que ia acontecer. As que me traziam a
comida entravam, punham os alimentos no chão e saíam em silêncio. Ao fim de um
mês deram-me roupa de secular e tirei o hábito. Apareceu a superiora e
mandou-me segui-la. Segui-a até à porta do convento; aí, subi para uma
carruagem onde encontrei a minha mãe, à minha espera. Sentei-me na parte da
frente e a carruagem partiu. Ficámos cara a cara sem dizer palavra, durante algum
tempo; eu tinha os olhos baixos e não me atrevia a olhá-la. Não sei o que
aconteceu na minha alma, mas depressa me atirei para os seus pés e pus a cabeça
nos seus joelhos. Não lhe disse nada, mas soluçava e cheguei a engasgar-me. Ela
repeliu-me com dureza. Não me levantei; comecei a sangrar do nariz; contra sua
vontade, peguei-lhe numa mão e, regando-a com lágrimas e com o sangue que
gotejava, apoiando a minha boca contra essa mão, beijava-a e dizia: Continue a
ser minha mãe e eu continuarei a ser sua filha... Ela respondeu-me,
empurrando-me com mais rudeza e arrancando a mão de entre as minhas: Levante-se,
desgraçada, levante-se. Obedeci-lhe, voltei a sentar-me e escondi a cara com a
touca. Tinha posto tanta autoridade e firmeza no som da sua voz que acreditei
dever evitar os seus olhos. As minhas lágrimas e o sangue que me caía do nariz
misturavam-se e desciam pelos meus braços, cobrindo-me sem que eu desse por
isso. Por qualquer coisa que disse, percebi que lhe tinha manchado o vestido e
a roupa interior, e que isso a aborrecia. Chegámos a casa e conduziram-me a um
pequeno quarto que tinham preparado para mim. Na escada, ainda me agarrei aos
seus joelhos, prendendo-lhe o vestido, mas tudo o que consegui foi que se
voltasse para mim e me olhasse movendo com indignação a cabeça, a boca e os
olhos, num gesto que pode imaginar melhor do que eu seria capaz de descrever.
Entrei na
minha nova prisão, onde passei seis meses; todos os dias pedia, inutilmente, a
graça de poder falar com ela, ver o meu pai ou escrever-lhe. Traziam-me a
comida e serviam-me. Uma criada acompanhava-me à missa, nos dias de festa, e
voltava a fechar-me. Eu lia, trabalhava, chorava e, às vezes, cantava; assim
passava os dias. Sustinha-me um sentimento secreto: eu era livre e a minha
sorte, por mais dura que fosse, podia mudar. Mas estava decidido que eu seria
religiosa, e fui-o. Tanta desumanidade e obstinação por parte dos meus pais
acabaram por confirmar as suspeitas que eu tinha sobre o meu nascimento; nunca
consegui encontrar outra forma de os desculpar. Aparentemente, a minha mãe
tinha medo que eu, um dia, insistisse na partilha dos bens, que voltasse a
pedir a minha parte e igualasse, assim, uma filha natural às filhas legítimas.
Mas o que não passava de uma conjectura ia tornar-se numa certeza.
Enquanto
estava fechada em casa, tinha poucas práticas religiosas; no entanto, na
véspera dos dias de festa mandavam-me confessar. Já vos disse que eu e minha
mãe tínhamos o mesmo director espiritual. Falei-lhe, expus-lhe toda a dureza da
conduta que tinham mantido comigo nos últimos três anos. Ele sabia. Queixei-me,
sobretudo, de minha mãe com amargura e ressentimento. Este sacerdote tinha
entrado tarde na vida religiosa; não lhe faltava humanidade. Ouviu-me
tranquilamente e, no fim, disse-me: Minha filha, compadeça-se da sua mãe; tenha
mais compaixão por ela em vez de a culpar. Tem bom coração. E pode ter a
certeza de que é com a maior das penas que faz tudo isto. Com a maior das
penas, senhor! E o que pode obrigá-la a isso? Não foi ela que me trouxe ao
mundo? Que diferença há entre mim e as minhas irmãs? Muita. Muita! Não compreendo a sua resposta...» In
Denis Diderot, A Religiosa, 1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN: 978-852-730-878-6.
Cortesia de E Perspectiva/JDACT