Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Primeiro Filho.
Toledo,
Castela. 23 de Agosto de 1489.
O
Filho do Ourives.
«(…)
Tinham se passado onze anos desde a sua conversão. Durante todo esse tempo se dedicara
com fervor à fé pela qual optara, observando cada dia santo, assistindo diariamente
à missa com a esposa, mostrando-se sempre ávido para servir a sua Igreja. Agora
pusera-se prontamente, na estrada, para atender ao pedido do padre, embora num passo
que não fatigasse o animal sob o sol abrasador. Chegou ao mosteiro jeronimita a
tempo de ouvir o som de bronze dos sinos chamando os fiéis para o Ângelus da
Encarnação. Viu também quatro suados irmãos leigos carregando a cesta de pão de
véspera e o caldeirão de sopa fraca, o caldo ralo que seria a única refeição do
dia para os indigentes reunidos na porta do mosteiro. Encontrou o padre Sebastián
andando de um lado para o outro no claustro, absorto numa conversa com frei Júlio
Pérez, o sacristão da capela. O ar de gravidade nos seus rostos chegou até Espina.
Atordoado foi a palavra que
piscou na cabeça do médico quando o prior mandou o sacristão sair e cumprimentou-o
sombriamente em nome de Cristo. Encontraram o corpo de um garoto entre as nossas
oliveiras, foi assassinado, disse o padre, um homem de meia-idade com uma ansiedade
crónica no olhar. Era como se vivesse com medo de Deus não estar satisfeito com
o seu trabalho. Sempre fora decente nas relações com os convertidos. Espina abanou
devagar a cabeça, mas a mente já estava atenta a um sinal de advertência. Era
um mundo violento. Com desagradável frequência alguém era encontrado morto, mas
após a vida ter fugido não havia razão para chamar um médico. Venha. O prior
conduziu-o até à cela de um frade, onde o corpo fora estendido. Já o calor
tinha trazido moscas e o especial fedor adocicado da mortalidade humana. Com uma
pontada de angústia, Bernardo Espina reconheceu o rosto e benzeu-se, não sabendo
se o reflexo era pelo menino judeu chacinado, por si mesmo ou pela presença do
clérigo.
Gostaríamos de saber mais
detalhes sobre esta morte. O padre Sebastián olhou para ele e continuou: saber
tudo. Tanto quanto é possível saber. Bernardo abanou a cabeça, ainda confuso. Ele
chama-se Meir e é filho de Helkias Toledano, disse Bernardo e o padre assentiu.
O pai do rapaz assassinado era um dos principais ourives de toda a Castela. Bernardo
Espina continuou: se não me falha a memória, o garoto tem no máximo quinze
anos. Seja como for, a sua vida mal passou da infância. Assim é que ele foi
encontrado? Exacto. Por frei Angelo, que colhia azeitonas de manhã muito cedo,
logo após as Matinas. Posso examiná-lo, padre?, perguntou Espina, e o prior
concordou com um gesto impaciente da mão. O rosto do garoto era inocente e não
tinha marcas. Havia contusões esbranquiçadas nos braços e no peito, um ponto
roxo nos músculos da coxa, três facadas superficiais nas costas e um corte no
lado esquerdo, sobre a terceira costela. O ânus estava rasgado e havia esperma
nas nádegas. E filetes muito nítidos de sangue de um lado a outro da garganta
cortada. Bernardo conhecia a família, judeus devotos e obstinados que
abominavam os que, como o próprio Bernardo, se tinham disposto a abandonar a
religião dos pais.
Após o exame, o padre Sebastián
pediu que o médico o seguisse até ao sacellum, onde se deixaram cair de joelhos
nas duras lajes diante do altar e recitaram o pai-nosso. De uma estante, atrás do
altar, o padre Sebastián tirou uma pequena caixa de sândalo. Abrindo-a, removeu
uma peça de seda escarlate, fortemente perfumada. Quando ele desdobrou a seda,
Bernardo Espina viu um fragmento seco e esbranquiçado, com menos de meio palmo
de comprimento. Sabe o que é isso? O padre parecia entregar o objecto com relutância.
Espina aproximou-se da luz oscilante das velas votivas e examinou-o. Um pedaço
de osso humano, padre. Sim, meu filho. Bernardo estava numa ponte frágil,
estreita, equilibrando-se sobre o traiçoeiro abismo do conhecimento ganho em horas
longas e secretas diante da mesa de dissecação. A dissecação fora proibida pela
Igreja, mas Espina ainda era judeu na época da aprendizagem com Samuel Provo,
um médico de renome, também judeu, que a praticava secretamente.
Agora ele olhava directamente nos
olhos do prior. O fragmento de um fémur, o maior osso do corpo. Neste caso,
tirado de perto do joelho. Examinou os relevos do osso, avaliando a massa, a angulação,
os sinais característicos, os sulcos. É da perna direita de uma mulher. Pode
dizer tudo isso simplesmente olhando? Sim. A luz das velas amarelava os olhos
do prior. É o mais sagrado dos elos para o Salvador. Uma relíquia. Bernardo
Espina fitou o osso com interesse. Nunca sonhara em chegar tão perto de uma relíquia
sagrada. O osso de uma mártir? É o osso de Santa Ana, disse calmamente o prior.
Espina demorou um pouco para compreender. A mãe de La Virgen Maria!» In
Noah Gordon, O Ùltimo Judeu, Uma História de Terror na Inquisição, Editora
Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.
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