Defesa da Sociedade
«(…) Queixavam-se as autoridades da crescente falta de decoro, dos preocupantes
sinais da desmoralização pública, da dissolução de costumes dos que praticavam
a desordem e a desenvoltura, da época convulsa que se atravessava, do transtorno
de sentimentos (numerosas contas nos Livros de Secretaria da Intendência Geral
da Polícia mostram a grande preocupação pelas festas públicas degenerando em
libertinagem, raptos frequentes de donzelas, filhos que faltavam ao respeito
pelos pais ou o célebre caso do falso mestre de línguas que seduzia mulheres
para práticas ilícitas e fazia em sua casa bailes indecorosos...). Tudo isso,
que afectava a tranquilidade pública e a estabilidade, pondo em causa normas
por que a sociedade secularmente se regera, era objecto de permanente
vigilância e contenção do Poder. Compreende-se, assim, que tenha sido essa
então a preocupação central da censura, atenta a tudo o que pudesse abalar os
fundamentos sociais e morais, desde a autoridade e prestígio da Nobreza e do
Clero à subversão pedreirista, desde as informações falsas ou sensacionalistas
que agitassem a opinião pública (mesmo os mais inocentes anúncios na imprensa
periódica passaram a ser sujeitos a censura prévia após o alvoroço levantado
pelo famoso caso do homem das botas de cortiça que anunciou ir atravessar o
Tejo a pé) aos atropelos da língua portuguesa, que tão grandes maus tratos
sofria então. Era a defesa da sociedade, em todos os seus aspectos, que acima
de tudo estava em causa. E a questão era tanto mais agudamente sentida pelo
Poder quanto não havia relações e valores novos suficientemente fortes para se
substituírem aos tradicionais. O perigo maior era o do vazio que se criava e
que iria dominar o segundo decénio de Oitocentos.
Esta nova atitude do Poder em geral e da Censura em particular prende-se
com a alteração que desde o último quartel do século XVIII se assinala em
Portugal no relacionamento do poder superior com a sociedade. A exemplo do que
já se registara e estava a ocorrer noutros pontos da Europa, o Estado aumenta a
sua capacidade de consulta, favorecendo mecanismos de comunicação mais fluida
da base social para o topo da hierarquia (este facto é expressivamente
documentado no amplo movimento peticionário ao trono que se desenvolve a partir
de 1780 e em outros factos, como, por exemplo, a retomada por dona Maria I das
tradicionais audiências gerais ao povo, nas manhãs das terças e quintas-feiras,
a que concorria muita gente humilde). A sociedade, no seu conjunto, nas suas
múltiplas manifestações, impregnava mais profunda e permanentemente o Poder,
obrigava este a dar respostas em conformidade, definia novas categorias na
relação Estado-Sociedade. O predomínio da defesa do Dogma, como relativo à Fé,
passava assim para a defesa da Moral, como relativa aos costumes e' em geral,
das relações sociais, reconhecendo-se que as alterações então verificadas constituíam
factores de instabilização da sociedade.
Defesa do regime Político
Com as Invasões e as convulsões sociais e políticas que as acompanharam,
favoreceu-se a politização da sociedade. A política passou da ciência dos
gabinetes e da ocupação dos homens de Estado para objecto da curiosidade de
todos, como observou o lúcido Francisco Solano Constâncio. Os testemunhos da
época dão-nos conta de como, entre 1808 e 1810, não apenas em Lisboa, as
pessoas se juntavam em grupos nas ruas para discutir os assuntos públicos, como
se o País todo fosse uma grande assembleia». In José Tengarrinha, Da Liberdade
Mitificada à Liberdade Subvertida, Uma Exploração no Interior da Repressão à
Imprensa Periódica de 1820 a 1828, Edições Colibri, Lisboa, 1993, ISBN
972-8047-29-0.
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Colibri/JDACT