Com a devida vénia à Doutora Adriana M. Guimarães
A reforma dos estudos
«(…) A obra de Verney assinala a
desfasagem cultural entre Portugal e a Europa. Para o autor, a gramática
deveria ser ensinada em Português, e não em latim; além disso, Verney foi
adepto dos métodos experimentais e se opunha a um sistema de debate baseado na
autoridade. Joel Serrão (2004) salienta que a obra consiste numa longa
discussão sobre os erros do ensino do Português e as maneiras de o corrigir.
Acresce que, segundo Jacinto Prado Coelho, a principal virtude da obra de
Verney reside no modo singular como o autor conseguiu conjugar várias
informações nos campos literário, jurídico e filosófico. No entanto, o que
pretendemos sublinhar é que, com as reformas, segundo Cerqueira, houve acima de
tudo uma mudança de pensamento: o princípio que fundava a consciência de si sob
o aristotelismo de origem medieval era a conversão religiosa, enquanto o
princípio que passa a fundar a consciência de si sob a filosofia moderna é o Cogito cartesiano. Ou
seja, ao suprimir o aristotelismo do ensino, mediante a expulsão dos jesuítas e
a reforma da instrução pública, o marquês de Pombal deu início, na segunda
metade do século XVIII, ao processo de modernização cultural do país:
Do ponto de vista filosófico, a
modernização na cultura de língua portuguesa supõe a superação do aristotelismo
português, como atitude específica, mediante a sua crítica, que é algo que só
nas últimas décadas vem sendo feito em Portugal (Cerqueira, 2002).
Nesta perspectiva de
entendimento, Cerqueira sublinha que a moderna forma de pensar não excluiu a
religiosidade do seio da cultura portuguesa. Aliás, essa ideia de que não há incompatibilidade
entre a lei de Deus e as leis da natureza é bem visível até mesmo na imprensa
portuguesa oitocentista, nomeadamente no artigo Palestra Científica, da Revista Contemporânea de Portugal e Brasil:
A religião e a ciência. Estes dois grandes resultados não se contrariam,
harmonizam-se e reciprocamente se fortalecem (Pimentel, 1859). Uma outra
observação interessante é a de Joel Serrão, assinalando que a reforma pombalina
não eliminou a acção docente da igreja, quer mediante os colégios de ordens religiosas
que não haviam caído em desgraça (…) quer mediante a acção difusa e infusa dos sacerdotes
e frades espalhados (…) um pouco por toda a parte. Inegável é que a
modernização portuguesa confunde-se, então, com o espírito do governo de
Pombal. Faz parte de um mesmo impulso, rumo à superação do estado de decadência
do século XVII. Ou seja, o processo de modernização, que afecta os dois lados
do Atlântico, tem a marca da intencionalidade de Pombal. Depois do encerramento
dos colégios dos jesuítas e da proibição do recurso aos seus métodos e recursos
pedagógicos, a educação e a forma de pensar passaram por mudanças consideráveis:
a moderna sociedade exige um novo homem que só poderá ser formado por
intermédio de uma renovada educação, fundamentada na razão e nas habilidades
necessárias ao bom convívio social.
Como esta nova forma de pensar
repercutiu e obteve eco? Foi uma evolução lenta e não linear, que contou com o
alargamento da cultura a camadas sociais médias. Autores como Habermas
procuraram entender o Iluminismo não apenas como um movimento de ideias
isoladas mas também como um movimento social. As estruturas sociais da esfera
pública começaram a adquirir forma a partir das cidades, espaço burguês por
excelência. Surgem novas modalidades de sociabilidade que vão pouco a pouco se
sobrepondo à corte: os cafés, os salões burgueses, as academias de ciência, as
lojas maçónicas. Esses novos espaços são interligados pela imprensa, instituição
nuclear da esfera pública literária. Ou seja, a iniciativa cultural foi, passo
a passo, deixando de ser exclusiva da corte e da nobreza para chegar aos filhos
da burguesia saídos das universidades. Verificou-se então um processo de
conquista e expansão da cultura impressa sobre terrenos sociais anteriormente
afastados dos circuitos da cultura letrada.
Assim, sem dúvida, a assimilação
da filosofia moderna não se pode desvincular, nem no Brasil nem em Portugal,
dos movimentos literários do século XIX, nem da reprodução e circulação das
formas simbólicas, como jornais e livros. Daí a importância do registo de
Antony Giddens sobre a mediação realizada pelos meios de comunicação no
processo de modernização. Afinal, para Giddens, a modernidade é inseparável da
sua própria mídia (2002). O autor destaca que os antigos jornais desempenharam
um papel fundamental na separação espaço-lugar, tendo o telégrafo exercido uma
função essencial. Na verdade, antes do telégrafo as notícias ficavam limitadas
aos acontecimentos mais próximos; quanto mais distante um acontecimento, mais
tarde ele surgia nos periódicos. Com o telégrafo (e posteriormente com o
advento de outros meios eletrónicos), o chamado valor-notícia dos
acontecimentos é alterado. Outra característica avançada por Giddens diz
respeito à intrusão de eventos distantes na consciência quotidiana. Ou seja,
através da leitura dos jornais muitas experiências invulgares podem ser
experimentadas pelo leitor. Assim, os media
funcionam como um agente da modernização caracterizado pela abertura
progressiva das fronteiras, dos limites, inclusive mentais e culturais. Neste
sentido de orientação para o futuro, Wolton ressalta que a comunicação se
estabeleceu como uma das condições essenciais para a emergência da sociedade
moderna:
A grande ruptura verificada a
partir do século XVI continua a ser uma abertura ao outro, que encontra nos
modelos intelectual e cultural da comunicação o meio teórico de a pensar. O
correio, a livraria, depois a imprensa e, simultaneamente, o comércio terrestre
e marítimo foram os instrumentos desta abertura evidentemente acentuada pelo
caminho-de-ferro, pelo telefone e por todas as técnicas do século XX. Eis
porque a comunicação tem tanto êxito: porque se acha no coração da modernidade
que é, por sua vez, o coração da cultura ocidental (Wolton, 1999).
Ora,
a sociedade ocidental europeia olhou o passado como algo a superar face aos
ideais modernizantes de progresso, ciência, razão e técnica, alimentando com
isso clivagens entre pessoas e entre sociedades. No caso europeu, a comunicação
passou a integrar uma ordem de regulação e controlo, de forma a estabelecer
relações económicas, políticas e simbólicas de dominação/exploração,
redefinindo e acelerando as relações entre as pessoas». In Adriana Mello
Guimarães, A Modernização, Problema Cultural Luso - Brasileiro, Um Estudo em
Torno da Revista Portuguesa (1889-1892), Tese de Doutoramento em Literatura,
Évora, Instituto de Investigação e Formação Avançada, Setembro de 2014.
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