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Suspirou. Descobri que o abade se corresponde o tempo
todo com o tal homem. É um frade dominicano chamado Scipio Lazarus. Parece
muito influente em Roma e até em Toulouse, no Languedoque. Scipio Lazarus,
repetiu em voz baixa o mercador. Ouvia aquele nome pela primeira vez. Segundo
as cartas que li, Rainerio foi nomeado abade por intercessão desse homem. É seu
devedor. Ignazio cofiou a barba, pensativo. Uma coisa é certa, a morte de
Maynulfo de Silvacandida e a nomeação de Rainerio têm tudo a ver com Scipio
Lazarus. O novo abade deve ser um joguete nas suas mãos. Isso é evidente. Mas
li outra coisa naquelas cartas. E ela lhe diz respeito. O que é? Scipio Lazarus
está morbidamente interessado em si e pediu a Rainerio para lhe dar todas as
informações que possa obter a seu respeito. Ao ouvir isso, Ignazio sentiu-se
apanhado numa teia de aranha cujos contornos ele não conseguia perceber.
Compreendeu que o mosteiro de Santa Maria del Mar não era mais um refúgio
seguro para ele nem um esconderijo adequado para o seu segredo. Devia partir o
mais depressa possível.
Nos dias seguintes, Ignazio permaneceu tranquilo no seu
alojamento. Às vezes, era visto dirigindo-se à biblioteca para trocar algumas
palavras com Gualimberto, mas raramente procurou a companhia do abade. Esperava
a volta de Willalme. Passeando pelo pátio, ocorreu-lhe encontrar uma vez ou
outra o jovem Uberto. Das saudações iniciais, logo passaram às conversas e
finalmente estreitaram uma amizade que lembrava a relação entre discípulo e
mestre. O rapaz crescera no mosteiro, mas sentia-se muito diferente dos
confrades. E, embora lhe fosse proibido sair do claustro, não era monge nem
servo. Muitas vezes o obrigaram a tomar os votos, mas ele sempre se recusava.
Era racional demais para ceder ao fascínio da vocação. Além disso, embora
mostrasse afecto por toda a família monástica, não encontrava nela nenhuma
figura de referência. Os monges viviam num mundo só deles, feito de silêncio e isolamento,
onde não se dava muita importância à vida secular nem, o mais das vezes, aos sentimentos
comuns.
Já o mercador de Toledo era diferente. Tinha carácter
difícil e ardiloso, mas com ele Uberto sentia-se à vontade. Ignazio, em certos
aspectos, parecia-se com o jovem monge.
Era um homem racional e curioso, sempre na fronteira entre
os mundos leigo e clerical. Acima de tudo, viajara bastante, e isso exercia
forte atractivo no rapaz. De conversa em conversa, foi crescendo entre ambos
certa cumplicidade. Um dia, o mercador ensinou-o a jogar xadrez, se bem que de
um modo um tanto estranho: para ele, o xadrez era uma alegoria da vida, e,
enquanto descrevia os movimentos das peças, aproveitava para compará-los aos actos
humanos, enfatizando o que poderia acontecer a uma pessoa caso não soubesse
interpretar bem os acontecimentos. Uberto passou a ser o seu grande admirador.
Desde então, compreendeu que Ignazio não era um homem comum. O mercador olhava
a vida por um ângulo muito pessoal, sempre protegido por trás de um sorriso
fugidio e de uns olhos que perscrutavam
sem se deixar perscrutar. E, como ele não tardou a descobrir, os seus actos
escondiam sempre segundas intenções.
Após uma semana de espera, uma embarcação atracou nas vizinhanças
do mosteiro de Santa Maria del Mar. Willalme tinha voltado. Era meio-dia quando
Uberto foi chamado ao escritório do abade. Ao receber o recado, precipitou-se
para o andar inferior do Castrum
abbatis perguntando-se qual poderia ser o motivo da
convocação. Encontrou o abade em companhia de Ignazio, os dois sentados à mesa,
um defronte do outro. Eles convidaram-no a sentar-se. A expressão do mercador
era inescrutável, mas Rainerio parecia calmo. O rapaz observou-os com atenção e
sentou-se. O abade limpou a garganta e começou: filho, deve estar a pensar porque
o convoquei. Vai saber já. Mestre Ignazio recebeu uma convocatória urgente e
partirá logo. Negócios exigem a sua presença em Veneza e depois sabe-se lá
onde... Fez uma pausa, talvez para encontrar as palavras certas. Uberto,
impaciente, empertigou-se na cadeira lançando olhares perplexos. Rainerio
prosseguiu: Ignazio perguntou-me se conheço alguém disposto a acompanhá-lo como
ajudante, ou melhor, como secretário. Conforme me explicava há pouco, o seu
companheiro, Willalme de Béziers, é um amigo fiel, mas analfabeto. Esperou um
sinal de aquiescência do mercador e concluiu finalmente: pois bem, ele prefere-o.
Acha-o inteligente e culto o bastante. A decisão é sua». In Marcello
Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho,
Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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