Lições
de matrimónio imperial
«(…) A intenção difamatória,
falsamente moralizante, do cronista ao narrar este suposto episódio escabroso,
motivado segundo Palencia pela origem portuguesa da donzela em causa, parece
evidente, dado que isso aparecia num texto dedicado à história do reinado
castelhano do futuro marido de Joana e, sobretudo, porque a única mulher que
Frederico de Habsburgo permitiu que permanecesse não era portuguesa mas
castelhana.
Ironia do destino, María Bobadilla,
descendente de uma família fidalga da Rioja, converter-se-ia mais tarde na
esposa de Diego Saldaña, um dos maiores colaboradores de Joana em Castela. É
possível que Palencia desejasse deixar impresso na mente do leitor que tudo o
que estava relacionado com as mulheres que rodeavam Joana e as suas irmãs era
de moralidade suspeita, quando na realidade parece que tudo não passou de uma
desculpa do imperador para não pagar os custos de manutenção de mulheres
acostumadas a uma vida cortesã mais rica e refinada do que a que então se
conduzia na corte de Viena. O próprio cardeal Piccolomini, que como secretário
pessoal conhecera muito bem Frederico III, não hesitaria em classificar o seu senhor
literalmente de avarento. No entanto, o recurso de Palencia não deveria fazer
duvidar da seriedade intelectual com que se preparava para a sua grande empresa
historiográfica…, referência ao elevado nível da educação clássica recebida por
esse cronista na corte papal, durante um período de grande esplendor cultural,
e aos seus contactos com os Medici, fundamento intelectual do seu trabalho como
historiador.
Na realidade, o grande difamador
de dona Joana não foi um vulgar adulador do grupo contrário à rainha, mas um
homem inteligente e culto, que possuía uma concepção muito elaborada do mundo
em que vivia. Como deixaria patente mais tarde na sua obra satírica Bellum luporum
cum canibus, traduzida para o castelhano como Batalla campal de los
perros contra los lobos, este clérigo, de provável origem judaica
convertida, apresenta uma visão crua da condição humana. Daí o êxito das suas
obras entre os historiadores e a ampla difusão de tópicos sobre a figura de
Joana na historiografia espanhola. Prosseguindo a narração da estada de Leonor
em Itália, Palencia omite o episódio da celebração das bodas da infanta pelo
bispo de Siena, o cardeal Piccolomini, grande conhecedor da beleza feminina, pai
de dois filhos ilegítimos e que numa das suas obras mais conhecidas, a chamada
Historia Federici III, deixaria uma breve mas precisa descrição da
imperatriz: uma donzela de mediana estatura, cabeça grande, olhos muito negros
e luminosos, boca pequena, bochechas rosadas, pescoço branco, figura harmoniosa
sem nenhum defeito, verdadeiramente distinta na beleza do seu corpo, que falava
sem intérprete (em latim ou talvez em italiano), emitia opiniões ponderadas,
respondia com prudência e comportava-se com realeza.
Uma descrição muito valiosa, não
apenas para poder fazer-se uma ideia do aspecto físico e da educação que Leonor
recebera, e por consequência também as suas irmãs, mas também porque permite
reconstituir, aproximadamente, a fisionomia de Joana, que o próprio Palencia considerava
mais bela que Leonor. À excepção de uma miniatura pintada cinquenta anos depois
da morte de Joana, a fúria iconoclasta que se abateria sobre esta infeliz
rainha de Castela, depois de cair em desgraça, é, possivelmente, a responsável
por não termos nenhum retrato fidedigno de uma mulher cuja esplêndida beleza, como uma medieval Helena de Tróia,
viria a ser uma das causas da guerra entre reinos irmãos. Na realidade, também
não há retratos originais da imperatriz Leonor, excepto a cópia que um pintor,
filho de um retratista da corte alemã e nascido dez anos depois da sua morte,
fez a partir de um retrato seu realizado em vida. Nessa obra, Leonor aparece
como uma mulher de traços muito proporcionais, algo parecida com o avô paterno,
o antigo mestre de Avis, e mais ainda com o homem que aparece com um joelho em
terra num dos célebres painéis de São Vicente de Fora, que certamente era um
membro da sua família. Ambos se caracterizam por uma cabeça alargada, nariz recto
e proporcionado, com a ponte algo pronunciada (uma possível herança materna) e lábios
carnudos. No referido retrato, Leonor apresenta cabelos provavelmente clareados,
segundo a moda que então imperava entre as mulheres da nobreza italiana e que
Joana também terá seguido num certo período da sua estada em Castela.
Sabe-se
que Frederico III ficou muito impressionado com o agradável aspecto físico da
sua prometida ao vê-la entrar pela primeira vez na catedral de Siena, onde a
esperava para receber as bênçãos nupciais das mãos de Piccolomini. Com efeito,
segundo um dos embaixadores alemães presentes, assim que Leonor pôs um pé no
templo, o imperador, cheio de alegria, aproximou-se e abraçou-a. Outro episódio
da estada da irmã de Joana em Itália, curiosamente não mencionado por Palencia na
sua crónica mas sobre o qual a futura rainha castelhana teria informação directa
através da irmã, é o que se refere à consumação do matrimónio da imperatriz.
Sabe-se que o acto teve lugar em Nápoles, na corte de Alfonso V de Aragão,
depois de Leonor e o marido terem passado por Roma, onde Frederico foi coroado
imperador pelo papa e Leonor recebeu do pontífice o nome de Helena. Graças às
cartas enviadas para Lisboa por Lopo Almeida, marido de uma das donzelas
expulsas da sua casa pela mãe de Joana em 1440, temos algumas notícias do então
ocorrido. Mas o futuro conde de Abrantes limitar-se-ia a contar apenas como
Frederico foi buscar Leonor e a conduziu à sua câmara, tanto que entrou,
lançaram-na na cama e ele com ela não sabemos que foi la». In Marsilio Cassotti, A Rainha
Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma
difamação anunciada, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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