sábado, 15 de setembro de 2018

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «A tarde ia adiantada, naquele início de Outono do ano 1121 do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Afonso avistou as muralhas com os merlões de remate em bico»

jdact e wikipedia

Independência
«(…) Mas como o filho de Teresa não parecia ouvi-lo, dirigiu-se ao irmão: Já me viste este pacóvio? Os olhos ainda lhe saltam cá para fora. E na boca escancarada ainda lhe entra uma mosca. Os dois abafaram o riso o melhor que podiam. E Afonso, corando até à raiz dos cabelos, fechou finalmente a boca. Vamos lá, rapazes, disse Lourenço. Tenho de levar essa ruiva o quanto antes para trás de um arbusto, que ainda se me descontrola o vergalho, como o de um anjinho que tem uma dona à frente pela primeira vez. Os dois irmãos desataram novamente em risos abafados e já se queriam levantar, quando Afonso agarrou Lourenço por um braço. Esperai! O que foi? Eu... Afonso, que nunca se vira em tais arranjos, tentava disfarçar o seu apuro. Que haveria ele de fazer, caso os outros dois sumissem, cada um com a sua cachopa, entre os arbustos? Quedar-se-ia como um patego, à frente das outras três. Engoliu em seco e acabou por sugerir: não será avisado acordarmos o que lhes vamos dizer? Dizer?, ecoou Lourenço, impaciente. Mas que receias tu de um grupo de lavadeiras? Acaso pretendes ir em busca de um jogral? Deixou o esconderijo, seguido pelo irmão. O coração de Afonso batia como um tambor em dia de romaria e as pernas não lhe queriam obedecer. Mas também não queria dar parte de fraco. E, com um seja o que Deus quiser, foi atrás dos outros.
Ninguém previra, porém, que as moçoilas corressem para a margem, em gritos assustados, mal os vissem. Só a ruiva ficou no meio da água, sem sequer baixar as saias, levantadas bem acima dos joelhos. As amigas, que logo começaram a juntar a roupa e a metê-la em cestos, bradaram-lhe: vem daí, que se faz tarde! A ruiva não fez caso. Lourenço perguntou-lhe: hás mister de ajuda para saíres da água? Oh, sois galante! Mas sede prudente, que as pedras são escorregadias. O jovem riu-se e replicou, ao entrar no rio: verás como ando por cima delas como se de tapetes de seda da mourama se tratasse. E posso saber quem é o bravo cavaleiro que me quer resgatar das correntes? Eu e o meu irmão somos filhos de Egas Moniz de Ribadouro. E aquele atadinho ali é Afonso Henriques, o herdeiro do falecido conde de Portucale.
A ruiva abriu a boca de espanto e largou finalmente as saias, o que pareceu assustar Lourenço, que escorregou e se estatelou no meio da água. Os outros, incluindo as mocitas amedrontadas, desataram às gargalhadas. Afonso era o mais eufórico, agastado por aquele tratamento de atadinho. Por entre os risos, a ruiva estendeu a mão ao mancebo: o salvador acaba a ser salvo. Em vez de se levantar, Lourenço puxou-a para si. O que tornou a assustar as outras, que insistiram: vem daí! Ainda te metes em trabalhos... Lourenço e a rapariga chapinhavam na água, até que ela se conseguiu libertar, provocando-lhe protestos: mas que te deu? Não vás! Tenho de ir. Sendo a mais velha, tenho a roupa da família do juiz de Resende a meu cargo. Se não acompanhar as outras, apanho tal tareia, que fico três dias sem me poder sentar. Levantando-se, Lourenço insistiu, caminhando atrás dela: não me podes deixar agora aqui assim...
Tornou a escorregar, caindo com grande estardalhaço. Mais gargalhadas. A moça gracejou: não me parece que vos dês bem com os tapetes da mourama. Agastado, Lourenço quedou-se dentro da água, enquanto os outros se riam. Chegada à margem, a ruiva pôs-se a torcer os cabelos. O vestido de linho grosseiro colava-se-lhe molhado ao corpo e dava a conhecer os seios fartos, os bicos tesos. Afonso deu graças a Deus por a túnica sobre as bragas largas não deixarem adivinhar a sua excitação. Mas a moça parecia só ter olhos para Lourenço, a quem lançou: prometo vir amanhã…, se aparecerdes mais cedo... Fez-se ao caminho com as outras, carregando os cestos.
Agradecido pela vossa ajuda, rugiu Lourenço, da água, aos outros dois. Só espero que amanhã não vos torneis a comportar como dois pategos. As outras eram medrosas..., desculpou-se o irmão. Depois de resmungar algo incompreensível, Lourenço acabou por lhes dizer: não haveis mister de um banho frio? É bom, para acalmar... Os dois olharam-se e, às gargalhadas, lançaram-se ao rio.
A tarde ia adiantada, naquele início de Outono do ano 1121 do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Afonso avistou as muralhas com os merlões de remate em bico, testemunha da influência moura. Seria no castelo de Guimarães que se juntaria a Lourenço e a Afonso Viegas, a fim de iniciar a sua formação guerreira. Entre os mestres, encontrava-se Gonçalo Mendes Sousa, um cavaleiro de vinte e poucos anos, irmão mais novo de Soeiro Mendes Sousa, a quem chamavam o Grosso, devido ao seu corpanzil, senhor da tenência de Aguiar Sousa. Afonso entrou na povoação que se desenvolvera à sombra protectora da fortaleza de Guimarães e que, com as suas mil almas, era uma das maiores do condado Portucalense, tão grande como o Porto, a cidade mercantil junto à foz do Douro. A Braga arquiepiscopal estava, há várias gerações, escassamente habitada, mas era a maior em extensão, que herdara dos seus tempos de capital da Galécia romana. As três estavam longe de poder concorrer com Coimbra. A cidade na margem direita do Mondego, que o rei Fernando Magno de Leão, bisavô de Afonso, conquistara aos mouros havia cerca de cinquenta anos, albergava a quantidade estonteante de cinco mil almas». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
               
Cortesia de Ésquilo/JDACT