Independência
«(…) Mas como o filho de Teresa não parecia ouvi-lo, dirigiu-se
ao irmão: Já me viste este pacóvio? Os olhos ainda lhe saltam cá para fora. E
na boca escancarada ainda lhe entra uma mosca. Os dois abafaram o riso o melhor
que podiam. E Afonso, corando até à raiz dos cabelos, fechou finalmente a boca.
Vamos lá, rapazes, disse Lourenço. Tenho de levar essa ruiva o quanto antes
para trás de um arbusto, que ainda se me descontrola o vergalho, como o de um
anjinho que tem uma dona à frente pela primeira vez. Os dois irmãos desataram
novamente em risos abafados e já se queriam levantar, quando Afonso agarrou
Lourenço por um braço. Esperai! O que foi? Eu... Afonso, que nunca se vira em
tais arranjos, tentava disfarçar o seu apuro. Que haveria ele de fazer, caso os
outros dois sumissem, cada um com a sua cachopa, entre os arbustos?
Quedar-se-ia como um patego, à frente das outras três. Engoliu em seco e acabou
por sugerir: não será avisado acordarmos o que lhes vamos dizer? Dizer?, ecoou
Lourenço, impaciente. Mas que receias tu de um grupo de lavadeiras? Acaso
pretendes ir em busca de um jogral? Deixou o esconderijo, seguido pelo irmão. O
coração de Afonso batia como um tambor em dia de romaria e as pernas não lhe
queriam obedecer. Mas também não queria dar parte de fraco. E, com um seja o
que Deus quiser, foi atrás dos outros.
Ninguém previra, porém, que as moçoilas corressem para a
margem, em gritos assustados, mal os vissem. Só a ruiva ficou no meio da água,
sem sequer baixar as saias, levantadas bem acima dos joelhos. As amigas, que
logo começaram a juntar a roupa e a metê-la em cestos, bradaram-lhe: vem daí,
que se faz tarde! A ruiva não fez caso. Lourenço perguntou-lhe: hás mister de
ajuda para saíres da água? Oh, sois galante! Mas sede prudente, que as pedras
são escorregadias. O jovem riu-se e replicou, ao entrar no rio: verás como ando
por cima delas como se de tapetes de seda da mourama se tratasse. E posso saber
quem é o bravo cavaleiro que me quer resgatar das correntes? Eu e o meu irmão
somos filhos de Egas Moniz de Ribadouro. E aquele atadinho ali é Afonso
Henriques, o herdeiro do falecido
conde de Portucale.
A ruiva abriu a boca de espanto e largou finalmente as
saias, o que pareceu assustar Lourenço, que escorregou e se estatelou no meio
da água. Os outros, incluindo as mocitas amedrontadas, desataram às
gargalhadas. Afonso era o mais eufórico, agastado por aquele tratamento de atadinho.
Por entre os risos, a ruiva estendeu a mão ao mancebo: o salvador acaba a ser
salvo. Em vez de se levantar, Lourenço puxou-a para si. O que tornou a assustar
as outras, que insistiram: vem daí! Ainda te metes em trabalhos... Lourenço e a
rapariga chapinhavam na água, até que ela se conseguiu libertar, provocando-lhe
protestos: mas que te deu? Não vás! Tenho de ir. Sendo a mais velha, tenho a
roupa da família do juiz de Resende a meu cargo. Se não acompanhar as outras,
apanho tal tareia, que fico três dias sem me poder sentar. Levantando-se,
Lourenço insistiu, caminhando atrás dela: não me podes deixar agora aqui
assim...
Tornou a escorregar, caindo com grande estardalhaço. Mais
gargalhadas. A moça gracejou: não me parece que vos dês bem com os tapetes da
mourama. Agastado, Lourenço quedou-se dentro da água, enquanto os outros se
riam. Chegada à margem, a ruiva pôs-se a torcer os cabelos. O vestido de linho
grosseiro colava-se-lhe molhado ao corpo e dava a conhecer os seios fartos, os
bicos tesos. Afonso deu graças a Deus por a túnica sobre as bragas largas não
deixarem adivinhar a sua excitação. Mas a moça parecia só ter olhos para
Lourenço, a quem lançou: prometo vir amanhã…, se aparecerdes mais cedo... Fez-se
ao caminho com as outras, carregando os cestos.
Agradecido pela vossa ajuda, rugiu Lourenço, da água, aos
outros dois. Só espero que amanhã não vos torneis a comportar como dois
pategos. As outras eram medrosas..., desculpou-se o irmão. Depois de resmungar
algo incompreensível, Lourenço acabou por lhes dizer: não haveis mister de um
banho frio? É bom, para acalmar... Os dois olharam-se e, às gargalhadas,
lançaram-se ao rio.
A tarde ia adiantada, naquele início de Outono do ano 1121
do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Afonso avistou as muralhas
com os merlões de remate em bico, testemunha da influência moura. Seria no
castelo de Guimarães que se juntaria a Lourenço e a Afonso Viegas, a fim de
iniciar a sua formação guerreira. Entre os mestres, encontrava-se Gonçalo Mendes Sousa, um cavaleiro de vinte e
poucos anos, irmão mais novo de Soeiro Mendes Sousa, a quem chamavam o Grosso, devido ao seu corpanzil, senhor da tenência
de Aguiar Sousa. Afonso entrou na povoação que se desenvolvera à sombra protectora
da fortaleza de Guimarães e que, com as suas mil almas, era uma das maiores do
condado Portucalense, tão grande como o Porto, a cidade mercantil junto à foz
do Douro. A Braga arquiepiscopal estava, há várias gerações, escassamente
habitada, mas era a maior em extensão, que herdara dos seus tempos de capital
da Galécia romana. As três estavam longe de poder
concorrer com Coimbra. A cidade na margem direita do Mondego, que o rei
Fernando Magno de Leão, bisavô de Afonso,
conquistara aos mouros havia cerca de cinquenta anos, albergava a quantidade
estonteante de cinco mil almas». In
Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
Cortesia de Ésquilo/JDACT