Independência
«(…) Quatro torreões quadrados guarneciam as muralhas de
Guimarães e dois mais pequenos flanqueavam a porta principal, a oeste, através
da qual Afonso cavalgou. A torre de
menagem quadrangular estava plantada no centro do recinto. No seu rés-do-chão,
armazenavam-se as provisões e, por razões de segurança, não possuía nenhuma
abertura para o lado de fora. Acedia-se ao salão, no primeiro andar, através da
escada móvel de madeira, que podia ser recolhida, em caso de perigo. Também o
adarve, que corria por sobre as muralhas, estava ligado por uma ponte de
madeira à entrada da torre. Afonso entrou no salão, onde os moços mais novos
punham a mesa para a ceia. A decoração era ainda mais espartana do que no tempo
de seus pais. Desde que dona Teresa fixara a sua residência na imponente
alcáçova de Coimbra e o castelo de Guimarães se tornara um posto militar,
ninguém cuidava de tais detalhes. Restavam a mesa grande, com os seus bancos
corridos e toscos, alguns castiçais, um baú a um canto e os utensílios de
atiçar o lume na grande lareira, que, devido ao tempo ameno, ainda não ardia.
Cães coçavam as pulgas deitados sobre as tábuas do chão, que precisavam de reparos, e os
tapetes que guarneciam as paredes estavam roçados. Nuns, viam-se javalis e
corças, outros eram de inspiração religiosa, com as imagens de Cristo e da
Virgem. O segundo andar da torre, onde antes ficavam os aposentos dos condes,
fora transformado numa sala de dormir para os jovens aspirantes a cavaleiros,
sem direito a camas. Dormiam sobre sacos de palha, cobertos por uma manta. E
nem para Afonso Henriques se abriria uma excepção.
Em primeiro lugar, havia que treinar a luta corpo a corpo,
em que os jovens se iam habituando ao manejo da espada e ao escudo oblongo,
chamado de cometa, que
chegava a medir mais de quatro pés de altura. Só quando Afonso estava capaz de
se defender eficazmente das pancadas e dos golpes do adversário, atacando ao
mesmo tempo, começou a sua formação a cavalo. O jovem passava tanto tempo em
cima do animal, que o montar se lhe
tornou mais natural do que o andar. Muitas vezes, os jovens treinavam toda a
noite, já depois de terem passado mais de doze horas em cima da sela, o que não
só servia para praticar o cavalgar em si, mas também o controlar do próprio cansaço.
O lorigão possuía um almofre, com que se cobria a cabeça, também em malha de
ferro, e debaixo do qual se usava a coifa, um capucho acolchoado. O elmo
cónico, com a sua protecção nasal, completava o armamento.
O treino intenso levava Afonso a experimentar novas
técnicas e procedimentos, até acordar, de repente, e constatar que não se
encontrava em cima do seu cavalo, mas sim deitado sobre o seu saco de palha, ao
lado dos companheiros. De resto, bem constituído e decidido, o filho de dona Teresa
era lesto na aprendizagem e, passado o primeiro ano de instrução, já se lhe
adivinhava o talento para o comando. Comparavam-no muito ao pai, devido à
estatura que o jovem prometia alcançar. Egas Moniz, no entanto, achava-o mais parecido com a mãe, com os
seus olhos castanho-escuros, que não deixavam transparecer emoções e que,
apesar disso (ou precisamente por causa disso) prendiam a atenção. Também os
cabelos eram escuros, porquanto os caracóis da infância tinham dado lugar a uma
cabeleira ondulada, da qual o rapaz se orgulhava tanto, que a usava comprida
até ao ombro. O que, num nobre, era até apreciado. Além disso, Afonso parecia
combinar em si a perspicácia da mãe com a bravura do pai. Na opinião de Egas
Moniz, ele daria ainda um melhor guerreiro do que o falecido conde originário
da Borgonha, pois o conde Henrique fervia em pouca água. Afonso prometia mais
sangue-frio.
Com o escurecer, abatia-se uma densa neblina sobre Braga,
naquele serão de fins de Novembro. Os cavalos que transportavam os mais
poderosos ricos-homens de Entre Douro e Minho resfolegavam nuvens de vapor no
ar húmido e frio. Chegados ao paço do arcebispo, logo os moços da estrebaria se aproximaram, a fim de tratar das montadas.
Os senhores seguiram o capelão, surpreendido por tão ilustres e inesperadas
visitas. À frente do cortejo, o homem segurava a lamparina de azeite, guiando
os recém-chegados pelos corredores de pedra frios. Em contraste com o andar
leve e silencioso do capelão, as botas dos cavaleiros troavam por sobre o
soalho, os acicates tilintavam. Paio Mendes Maia recebeu-os expectante, na sua
câmara privada, na qual ardia uma lareira acolhedora. Depois de uma saudação
curta, e ainda antes de se terem sentado, Soeiro Mendes Sousa, o Grosso, anunciou, com a
imponência do seu corpanzil: Decidimos abandonar a corte de dona Teresa! Que
dizeis?, surpreendeu-se o arcebispo. Não mais pactuaremos com Fernão Peres Trava!»
In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O
Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
Cortesia de Ésquilo/JDACT