Uma
inocente conhece o mundo. 1335
(…)
Então eu relaxei, notando, mais uma
vez, como era agradável a sensação do escarlate macio contra a minha pele, como
o seu drapeado tinha um peso e um movimento que lhe davam uma aparência fluida,
de tal forma que eu me sentia graciosa. Inclinei-me
para Mary. Cabeça erguida, irmãzinha. Esta manhã, as meninas Salisbury vão
atrair a atenção de todo mundo. Está muito bonita nesse vestido. Reunida a
família no saguão, tirei o meu manto do cabideiro na parede, mas a minha mãe
abanou a cabeça e me deu um dos seus: um manto cinza, forrado no elegante gris,
que é produzido a partir da pelagem de inverno dos esquilos, só a parte
traseira, a mais bela. Para minha mãe era uma capa curta, mas em mim passava
dos joelhos, e era maravilhosamente macia e envolvente. Tire-a quando entrar na
nave, instruiu-me ela. Será um desperdício do tecido que gastei no seu vestido
escondê-lo sob um manto. A minha intenção é mostrar que o seu corpo está pronto
para gerar filhos.
As suas palavras me constrangeram,
como se eu estivesse prestes a desfilar nua pela cidade. Meus olhos devem ter-se
enchido de lágrimas, pois o meu pai deu-me um tapinha no ombro, agora
suficientemente coberto, sussurrando que a minha
mãe estava com dor de cabeça e não queria ser rude. Agarrei a mão que Mary me
oferecia. Então, vamos!, falei, com forçada alegria. Isso distraiu Mary, que
seguiu rindo e pulando ao meu lado enquanto eu me dirigia para a porta. Will,
de repente, disparou na frente e a abriu com uma reverência. Dessa vez eu
também ri, grata por meus irmãos menores. A manhã de Outono estava húmida com a
névoa do rio, que se dispersaria por volta do meio-dia, mas que naquele momento
deixava-me satisfeita por ter um manto forrado de pêlo. Uma manhã tão húmida e
fria normalmente inspirava reclamações de minha parte, mas nesse dia ela era
reconfortante, como se assim eu pudesse guardar-me em privacidade por mais
algum tempo. Tentava lembrar-me de que eu estava apenas sendo exibida para
possíveis pretendentes. Levaria um ano ou mais até que cruzasse o portal da
igreja para contrair matrimónio. Mas eu não conseguia afastar a sensação de
estar deixando para trás os limites de um mundo que eu conhecia para seguir na
direcção de um vazio sem fronteira, sem fim. Tremi, e, com a mão livre, apertei mais o manto que me cobria.
Mary continuava a pular ao meu lado.
Eu apertava sua mão enquanto me perguntava o quão frequentemente eu a veria
depois de casada, o quanto eu saberia da sua vida. À porta da igreja, Nan tirou
o meu manto e fez menção de tomar a mão da minha irmã, mas eu a segurei. Ela me
ajudará a me manter firme, não é mesmo, Mary? Minha irmã pendurou-se na minha
mão e assentiu com um sorriso tão prazeroso que eu tomei coragem. Ao adentrar a
nave, senti reafirmar-se a atmosfera familiar. Era impossível contar quantas
vezes eu havia cruzado aquela porta. A vastidão de pedra acima de mim parecia
tornar mais leves os meus passos. Janyn Perrers! Tenha um bom-dia!, exclamou
meu pai. Meu coração palpitou. Era um viúvo, rico e extremamente bonito, que
durante um período fora um assíduo convidado à nossa mesa. Entretanto, como
fazia algum tempo que ele não dava o ar da sua graça entre nós, eu imaginava
que ele se tivesse casado. Estava como eu me lembrava:
pele bronzeada, olhos escuros e brilhantes, cabelo cacheado. Tinha uma voz
grave, que ressoava, e o seu rosto se iluminava quando ele sorria. Usava as suas
roupas elegantes com grande desenvoltura. Juntamente com meu pai, o Janyn era o
meu ideal masculino.
John Salisbury, Benedicite. Janyn
Perrers fez uma reverência. E madame Margery. Fez outra reverência, mas eu
notei que ele não olhou directamente nos olhos da minha mãe, como havia feito
com o meu pai. Então olhou em minha direcção. E esta é lady Alice? Certamente
não é aquela criança que eu vi brincando no seu jardim. Não é possível que do
dia para a noite ela se tenha tornado uma mulher tão linda! Os seus olhos eram
tão amistosos que eu não pude deixar de sorrir. Fiz uma mesura, e fiquei
surpresa quando a sua mão quente subitamente agarrou a minha. Encarando-me como
se eu fosse a única pessoa na nave, ele se curvou e tocou a minha mão com os seus
lábios. Senti-me corar dos pés à cabeça. Perdi a fala, e só o que consegui
fazer foi olhá-lo fixamente enquanto ele, mais uma vez, cumprimentava meus pais
e afastava-se em direcção à multidão». In
Emma Campion, A Amante do Rei, 2009, tradução de Patrícia Cardoso, Editora
Record, 2013, ISBN 978-850-140-467-1.
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