«(…) Decida livremente, Uberto, disse Ignazio. Não é obrigado a
aceitar. O rapaz ficou tão surpreso que precisou fazer um esforço para não
hesitar. As palavras que ouvira repercutiam na sua cabeça, provocando-lhe
arroubos de entusiasmo. Como poderia recusar uma oferta assim? Tinha finalmente
a oportunidade de afastar-se do mosteiro e explorar o mundo. O seu maior sonho!
Aceito. E de bom grado, respondeu com voz trémula, quase sem pensar. Então está
decidido, decretou o abade. Ignazio de Toledo cuidará de si. O mercador levantou-se
e pousou a mão no ombro do jovem. Tem a certeza de que tomou a decisão correta?
É uma resolução importante, que não se pode tomar levianamente. Tenho,
confirmou o rapaz, eufórico. Óptimo. Ignazio parecia satisfeito. Partiremos
amanhã, depois dos laudes.
Vá preparar o seu alforje, mas não leve muita coisa. Viajaremos com rapidez,
recomendou. Ficarei mais alguns minutos com o abade, pois preciso assinar os
papéis da sua tutela. O rapaz concordou e saiu, ainda incapaz de acreditar no
que havia acabado de acontecer.
A noite diluiu-se numa manhã cinzenta e escura. Um vento
fraco agitava os caniços. A barca não era a mesma que levara Willalme a
Pomposa. Era mais comprida e mais larga. Tinha na popa uma tenda capaz de
abrigar seis pessoas. O casco recurvo, sem quilha, era formado por pranchas fixadas
com tiras de couro, resina e breu. Ignazio subiu a bordo, seguido de Uberto e
Willalme. O timoneiro, empunhando uma tocha, aproximou-se e perguntou qual era
o destino. Veneza, limitou-se a responder o mercador, sentando-se no banco dos
passageiros. O homem transmitiu a ordem aos quatro remadores e dirigiu-se para
a popa, a fim de assumir o leme. O barco começou a vogar, com os remos
produzindo na água uma sequência de ruídos, a princípio confusa, depois mais
ritmada. Na margem, alguns monges, envoltos nas suas batinas pretas, saudavam
com leves acenos de cabeça. Uberto ficou olhando para eles até se dissiparem na
distância como miragens. Não os reveria tão cedo. Ignazio virou-se, com ar
soturno, para o mosteiro de Santa Maria del Mar. Logo que possível, voltaria. Não
sabia ainda como, mas a morte de Maynulfo seria vingada.
No Castrum abbatis,
Rainerio Fidenza despediu Hulco e Ginesio após um breve colóquio. Haviam-se
saído muito mal numa missão muito simples e ele próprio quase fora desmascarado:
se Ignazio, com o punhal na garganta de Hulco, houvesse perguntado o nome do
mandante, Hulco o revelaria... Por sorte, o mercador não fizera isso. Devia ter
concluído que os dois bisbilhoteiros haviam decidido entrar por conta própria no
seu alojamento. Essa era uma das vantagens de ser abade, de quem raramente alguém suspeitava. Imerso nesses
pensamentos, Rainerio afundou-se no assento, com os cotovelos apoiados nos
braços da cadeira e os dedos entrelaçados sob o queixo. Reflectia sobre as
últimas palavras dos servos: partiu sem levar o baú. Sabemos onde o escondeu! Permaneceu
imóvel na penumbra, relembrando do encargo que Scipio Lazarus lhe confiara anos
antes, na tranquilidade de um claustro bolonhês. Em seguida, levantou-se e foi para
a biblioteca, pronto para levar a cabo a sua cruzada. Era tarde e, pelas
estreitas janelas, entrevia-se o céu estrelado. O abade deslizou junto às paredes
nuas até chegar ao ângulo mais recuado da biblioteca. Perscrutou as sombras, de
onde vinham chiados de ratos, e avançou cautelosamente à luz de uma lanterna. De repente, ao iluminar uma
parte do pavimento, viu alguma coisa... Lá estava!» In Marcello Simoni, O Mercador de Livros
Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-224-029-4.
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