domingo, 30 de setembro de 2018

Um Intelectual na Política. Mário Pinto Andrade. «… diria o quanto sinto a sua falta e quanto o amo acima de todas as coisas e como tento diariamente não me tornar prisioneira do meu passado embora isso se reflicta profundamente na essência do meu ser»

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Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) A osmose estabelece-se entre os escritores que ficaram em Angola e os que, estando a estudar em Portugal, como Agostinho Neto, se voltam para a miséria e as inquietações dos seus povos.
O Centro de Estudos Africanos, crisol de discussões e de confrontações culturais, tinha sido criado em Lisboa em 1952, por iniciativa do Agostinho Neto, do Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC. (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), de Francisco José Tenreiro e do autor deste texto.

A Voz dos Afectos. Carta sobre Mário de Andrade
(Henda Ducados Pinto Andrade)
Durante a maior parte da minha infância e adolescência Mário esteve ausente. O interessante da questão é que me fui acostumando desde muito cedo às suas constantes ausências. Ele ia e vinha o tempo todo, coisa que era normal para nós. Contudo, sempre que Sarah viajava, lembro-me de ter muitas saudades dela que ia ao quarto dela cheirar as suas roupas e chorava e chorava.
Ter saudades do Mário por outro lado era diferente e não tão doloroso porque sabíamos que as suas ausências tinham um propósito. Muito cedo tive que aprender a escrever de maneira a poder comunicar-me com ele onde quer que ele estivesse. O escrever e receber cartas dele até aos seus últimos dias, foi o que de mais bonito me poderia ter acontecido. O papel era belo e requintado assim como as palavras nele escritas. As suas cartas eram cheias de recomendações relativas à obtenção de um bom método de trabalho bem como a metodologias de investigação. Ele estava sempre preocupado acerca do meu pobre desempenho como estudante bem como ao meu fraco engajamento relativamente aos meus estudos assim como as minhas leituras. Esta preocupação sua serviu-me para mais tarde ultrapassar as minhas limitações. Interessante nisto é que o conteúdo complexo das cartas era o mesmo quer quando eu tinha 10 anos quer quando tinha 20 anos.
O que mais me surpreendia, e ainda continua a surpreender-me acerca dele, é que o Mário era extremamente organizado com tudo. Ele tinha regras que gostava de seguir em qualquer lado do mundo em que estivesse e ouvir noticiários era uma delas, que penso que ele teria adquirido quando muito jovem. O noticiário das 8 era qualquer coisa de obrigatório, e toda a casa deveria manter-se em silêncio vendo o noticiário da televisão. Ele dizia sempre que nos devíamos manter informados e paralelamente sabermos as origens das palavras pelo que tive que dedicar mais tempo (aos meus pobres conhecimentos de latim) para alcançar o sentido verdadeiro das palavras. Prendre un bol d’air por volta das seis era crucial para ele, deveríamos dar um passeio a essa hora para reflectir e respirar. Durante o passeio ele falava e eu ouvia sem no entanto prestar muita atenção. Durante muitos anos, eu ressenti-me do facto do Mário não fazer o que os outros pais faziam tal como levar-me à escola ou à piscina. De facto, Mário nunca esteve presente nos acontecimentos mais marcantes da minha vida, tal como cerimónia de fim dos estudos liceais.
Se o Mrário pudesse ouvir-me hoje, eu dir-lhe-ia que não restaram ressentimentos por não ter estado presente nos acontecimentos, aparentemente mais importantes dessa altura da minha vida porque eu ainda continuo a ver o noticiário das oito. Continuo a apreciar palavras bonitas escritas em papel requintado e, agora que ele partiu, gostaria muito que tivéssemos tido uma conversa em que lhe diria o quanto sinto a sua falta e quanto o amo acima de todas as coisas e como tento diariamente não me tornar prisioneira do meu passado embora isso se reflicta profundamente na essência do meu ser». In Mário Pinto Andrade, Um Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.

Cortesia de Colibri/JDACT