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Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) A osmose estabelece-se entre os escritores que ficaram em Angola e
os que, estando a estudar em Portugal, como Agostinho Neto, se voltam para a miséria
e as inquietações dos seus povos.
O Centro de Estudos Africanos, crisol de discussões e de confrontações
culturais, tinha sido criado em Lisboa em 1952, por iniciativa do Agostinho
Neto, do Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC. (Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde), de Francisco José Tenreiro e do autor
deste texto.
A Voz dos Afectos. Carta sobre Mário de Andrade
(Henda Ducados Pinto Andrade)
Durante a maior parte da minha infância e adolescência Mário esteve ausente.
O interessante da questão é que me fui acostumando desde muito cedo às suas
constantes ausências. Ele ia e vinha o tempo todo, coisa que era normal para
nós. Contudo, sempre que Sarah viajava, lembro-me de ter muitas saudades dela
que ia ao quarto dela cheirar as suas roupas e chorava e chorava.
Ter saudades do Mário por outro lado era diferente e não tão doloroso porque
sabíamos que as suas ausências tinham um propósito. Muito cedo tive que
aprender a escrever de maneira a poder comunicar-me com ele onde quer que ele
estivesse. O escrever e receber cartas dele até aos seus últimos dias, foi o
que de mais bonito me poderia ter acontecido. O papel era belo e requintado
assim como as palavras nele escritas. As suas cartas eram cheias de
recomendações relativas à obtenção de um bom método de trabalho bem como a
metodologias de investigação. Ele estava sempre preocupado acerca do meu pobre
desempenho como estudante bem como ao meu fraco engajamento relativamente aos
meus estudos assim como as minhas leituras. Esta preocupação sua serviu-me para
mais tarde ultrapassar as minhas limitações. Interessante nisto é que o
conteúdo complexo das cartas era o mesmo quer quando eu tinha 10 anos quer
quando tinha 20 anos.
O que mais me surpreendia, e ainda continua a surpreender-me acerca
dele, é que o Mário era extremamente organizado com tudo. Ele tinha regras que
gostava de seguir em qualquer lado do mundo em que estivesse e ouvir noticiários
era uma delas, que penso que ele teria adquirido quando muito jovem. O
noticiário das 8 era qualquer coisa de obrigatório, e toda a casa deveria
manter-se em silêncio vendo o noticiário da televisão. Ele dizia sempre que nos
devíamos manter informados e paralelamente sabermos as origens das palavras
pelo que tive que dedicar mais tempo (aos meus pobres conhecimentos de latim) para
alcançar o sentido verdadeiro das palavras. Prendre un bol d’air por volta das
seis era crucial para ele, deveríamos dar um passeio a essa hora para reflectir
e respirar. Durante o passeio ele falava e eu ouvia sem no entanto prestar
muita atenção. Durante muitos anos, eu ressenti-me do facto do Mário não fazer
o que os outros pais faziam tal como levar-me à escola ou à piscina. De facto, Mário
nunca esteve presente nos acontecimentos mais marcantes da minha vida, tal como
cerimónia de fim dos estudos liceais.
Se o Mrário pudesse ouvir-me hoje, eu dir-lhe-ia que não restaram ressentimentos
por não ter estado presente nos acontecimentos, aparentemente mais importantes
dessa altura da minha vida porque eu ainda continuo a ver o noticiário das
oito. Continuo a apreciar palavras bonitas escritas em papel requintado e, agora
que ele partiu, gostaria muito que tivéssemos tido uma conversa em que lhe
diria o quanto sinto a sua falta e quanto o amo acima de todas as coisas e como
tento diariamente não me tornar prisioneira do meu passado embora isso se
reflicta profundamente na essência do meu ser». In Mário Pinto Andrade, Um
Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri,
Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.
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