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São
Francisco
«(…) Bem perto de
nós, uma impressora a laser começou a imprimir um papel. E logo de seguida
outro. Deram-nos os papéis, onde em cada um estava um nome e uma morada. O nome
no meu era Jongee. Ele seria a minha alma gémea. Uma alma gémea chamada Jongee?
A sério?! O meu nome não era muito melhor, Meloncita, pequeno melão. Não, eu não
sou baixinha nem gorda. Fica mesmo ao pé do nosso campo, disse a Jen, sabendo
que este tipo de coisas me entusiasmava mais a mim do que a ela. Acedi aos folders
da minha memória para me tentar lembrar de alguns dos nossos vizinhos. Quem
seria o Jongee? Folder 1: barriga grande, bigode com mais 5 cms do que devia, nádegas
à mostra. Folder 2: homem com ar de já ter sido mulher e que agora parecia um transexual.
Folder 3: o homem que…
Delete. Delete.
Delete. Apaguei todos os folders dos nossos vizinhos, porque só me lembrava dos
repelentes. Um arrepio de frio percorreu o meu corpo. O que até nem foi mau,
porque deu para refrescar. E se a minha alma gémea fosse repelente? Como seriam
os nossos filhos? Igualmente repelentes mas mais pequenos? Desanimadas, fomos
para a morada tentar descobrir quem era o Jongee. Vimos a tenda dele e vamos
entrar, disse a Jen. Não. Claro que vamos. Não podemos entrar assim na tenda de
estranhos. Aqui não se importam. Este foi o meu diálogo com a Jen durante uns
minutos. Olá, disse uma rapariga, com longas tranças louras, que ao ouvir tanto
barulho tinha ido ver o que se passava. Olá, disse de imediato a Jen. A minha
amiga vem buscar a sua alma gémea. Ele chama-se Jongee e mora aqui. Ela olhou para
mim durante uns segundos. Da cabeça aos pés. Sim, estava a avaliar-me. Apesar
de nunca me ter apercebido possuir capacidades de adivinhar o futuro, sabia o
que ela ia dizer de seguida. Que pena. Ele não está agora. Eu sou a Sela. Eu
sabia! (exceptuando o nome dela). Eu devia tornar-me uma vidente e ir para
Venice Beach ler o futuro dos turistas. O meu Jongee, o pai dos meus filhos,
tinha-a mandado verificar se a alma gémea era do seu género. Se não fosse, ela
devia dizer que ele não estava. Mas venham comigo ao Temple of Transition. Hã.
O quê? Por esta é que eu não estava à espera. Ela estava a ser simpática e estava
a convidar-nos para irmos a uma enorme estrutura de madeira onde as pessoas se
iam despedir de amigos ou familiares que tinham morrido, ou de relações que
tinham acabado. Umas deixavam lá fotografias, outras escreviam os nomes. Ah ha.
Eu sabia. Era uma mensagem que ela me queria transmitir: a minha relação com a
minha alma gémea tinha morrido. Damn you, Sela. Estás a mexer com o destino e
vais ser punida por isso, pensei. Sorri e disse: claro. Vamos.
Quando comecei a
ver o Temple of Transition à distância, senti que tinha sido transportada para
Tatooine, na Guerra das Estrelas. A qualquer momento, esperava ver o Luke
Skywalker aparecer no seu hovercraft Land Speeder. Era uma estrutura gigantesca
de onde vinham várias pessoas com lágrimas ainda a escorrerem dos olhos. O
vento continuava a não se cansar de soprar. Lá dentro, o templo respirava.
Centenas de pessoas choravam com intensidade, enquanto reflectiam, olhando para
as fotografias aí depositadas. Eu tenho dois problemas: quando alguém espirra,
eu espirro. Quando alguém chora, eu choro. E foi o que fiz. E como a Jen é
igual a mim, fez o mesmo. Começámos a chorar. Depois de sairmos do Temple, a
Sela levou-nos ao mutant vehicle dela e de uns amigos. Hmmm…, se calhar a minha
alma gémea não estava mesmo na tenda. Se calhar a Sela não era a testadora
oficial do meu Jongee. Comecei a gostar dela. O mutant vehicle da Sela merecia
estar no MoMA em Nova Iorque. Era um gigantesco galeão espanhol que navegava
muito devagar pelo deserto. Lá em cima, estavam dezenas de amigos dela. Uns
vestidos de pirata, outros de personagens de videojogos…, e…, e…, os meus
pensamentos entraram em modo standby. Peguei na mão da Jen e apertei-a com
tanta força que provavelmente lhe parti quatro ou cinco dedos. Uns três metros à
minha frente, um raio de luz iluminava um homem. Era uma luz que vinha do céu.
Era uma luz divina que estava a chamar a minha atenção. Eu pensava que a minha
alma gémea chegaria até mim através de um néon mas, afinal, era através de uma
luz transcendental. Oh my god! Oh my god!, disse a Jen, porque estava a olhar à
volta e só via homens bonitos. Oh my god! Oh my god, disse eu. São lindos, não
são? Não é isso. É ele. A minha alma gémea. Encontrei-o. O Jongee?
Tirei o iPhone do bolso. Abri o álbum de fotografias. Vê. A Jen
arregalou tanto os olhos que poderiam ter caído das órbitas e disse: Oh my god.
É ele. Sim, é ele. À minha frente, estava o homem com quem tirara fotografias
em Reno. Tinha encontrado a minha alma gémea». In Francisco Salgueiro,
Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
Cortesia
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