Independência
«(…) Até um pouco de latim os monges da Várzea e de Cárquere lhe
conseguiram enfiar no toutiço, completou Ermígio. Gostaria de o ver, anunciou
Sancho Nunes, irmão do conde de Celanova, que não conhecia o rapaz. Também eu,
declarou o Grosso, dando
uma palmada na coxa. Vi-o ainda catraio... Virando-se para os irmãos Moniz: ele
não está em Guimarães? Que venha aqui a Braga, ouvir o que nós temos para lhe
dizer. Todos concordaram, só Egas Moniz se manteve calado. Mesmo não estando de
acordo com o comportamento de dona
Teresa, desagradava-lhe que dissessem ao rapaz mal da mãe. Por outro lado, o
crescente poder que Fernão Peres adquiria sobre o condado podia ameaçar a posição
do próprio Afonso. E, como Paio Mendes juntava a sua voz à dos outros, custava
a Egas Moniz, fiel respeitador dos ensinamentos da Igreja, contrariar o
arcebispo. Afonso Henriques surgiu na companhia dos irmãos Viegas e de Gonçalo
Mendes, o irmão do Grosso.
Logo os senhores lhe gabaram a aparência, o tamanho e a constituição. Era o
mais novo dos três jovens aspirantes a cavaleiros e já os ultrapassara em
altura. Os cabelos ondulados caíam-lhe lustrosos sobre os ombros, os olhos
perspicazes intimidavam, apesar de ainda se descortinar neles a ingenuidade e a
insegurança próprias da idade. Apresentava-se aprumado: debaixo de uma capa vermelha,
luzia uma túnica de linho, imaculadamente branca, larga e comprida pelos
joelhos, composta pelo cinto de couro. As botas estavam bem ensebadas e
polidas. Já nas de Lourenço colavam-se restos de lama e os cabelos castanhos e
lisos do filho mais velho de Egas Moniz estavam despenteados. O Moço, por seu lado,
apresentava-se com o cinto de badana, por sobre a túnica engelhada. Os jovens
beijaram a mão do arcebispo, pedindo a sua bênção. E, depois de cumprimentarem
os presentes, Afonso inquiriu: queríeis falar comigo, meus senhores? Paio
Mendes tomou a palavra: pretendemos chamar-vos a atenção para um assunto da
maior importância e que nos vem deixando em cuidados: os destinos do nosso
condado. Verdade seja dita: dona Teresa possui qualidades raras numa senhora.
Mas há uma certa situação que se vem tornando insustentável. Todos estes
senhores que aqui vedes, os melhores ricos-homens da nossa terra, abandonaram a
corte coimbrã. Afonso mirou-os, estupefacto. Engoliu em seco e dirigiu-se ao
arcebispo: bem, eu sei que minha mãe foi longe demais, ao ter-vos mandado
prender... O que verdadeiramente nos põe em cuidados é a sua ligação à
parentela do conde de Trava. Receamos que o condado caia nas mãos de Fernão
Peres.
Afonso sentiu-se desconfortável, recordou que a sua estada
em Coimbra não correra como ele planeara. Apesar de ter confirmado vários
documentos com a sua assinatura, não conseguira esclarecer com a sua mãe o seu
verdadeiro papel na corte. Fernão Peres esgueirava-se por entre eles como uma
serpente, com os seus olhos verdes, que a Afonso assomavam venenosos. Os Trava
eram famosos pela cor rara de olhos, gabava-se a beleza das suas donas. O que
mais desiludira o jovem, porém, fora a indiferença de Teresa perante as suas
dúvidas. Contara com o interesse e o apoio dela, mas sua mãe mantinha-se
distante. Mesmo a tentativa de Afonso de a interessar pela sua instrução
guerreira havia sido despachada com um gesto impaciente, como fazia com ele em criança, o que criara questões
incómodas na cabeça do infante: teria de aguentar, para sempre, a sombra de
Fernão Peres atrás de si? Que planos teria sua mãe para o futuro? E porque não
os revelava ao seu único varão? O jovem deu voz a um outro seu receio: pretenderá
a senhora minha mãe contrair matrimónio com Fernão Peres? Por Deus, bradou o Grosso. Mais ninguém teria
legitimidade para tirar de lá o homem!
Faremos tudo o que esteja ao nosso alcance, declarou o
arcebispo, a fim de evitar tal matrimónio. Do ponto de vista da Igreja, até nem
será custoso... O prelado interrompeu-se, apesar de Afonso aguardar ansioso
pelo resto da frase. E, mais uma vez, se fez ouvir o vozeirão de Soeiro Mendes Sousa:
é forçoso que vós, Afonso, como herdeiro do conde Henrique, tomeis o lugar de
vosso pai! Apanhado de surpresa, o jovem gaguejou: O..., lugar de meu pai? Certamente.
Mas..., minha mãe ainda é viva... É
verdade, assentiu Egas Moniz. A bem ou a mal, dona Teresa é a senhora legítima
destas terras, que herdou do pai, o imperador. Mas a sua regência toma rumos
confusos e perigosos, insistiu Paio Soares Maia. Por isso mesmo, nós, aqui
presentes, lhe virámos as costas! Bem ,Egas Moniz tentava contemporizar,
teremos de esperar que o seu único filho se faça homem, se torne guerreiro... O
que não demorará muito, retorquiu Gonçalo Mendes, se ele continuar a fazer
tantos progressos». In Cristina Torrão,
Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
Cortesia de Ésquilo/JDACT