Canto Primeiro
O Regresso do Duque
«(…)
XI
Oh! contemplae, servis
aduladores,
Um monarcha, que rende á
natureza
O devido tributo!
Favoritos,
Palaciana caterva, eia,
conspirem,
Por ver o caso horrendo
e sobrehumano!
O meigo rosto voltem, d’horror
fujam
Por ver um rei, que
chora e sacrifica
Nas aras da ternura e
sentimento!
Correi, vinde pasmar d’este
successo,
Expurgae d’essa nódoa o
régio manto!
Pasmae, nobres vampiros,
conhecendo
Que os monarchas são
homens!... Quasi sempre
É bom seu coração :
conselhos pérfidos,
O interesse, a vaidade,
o fero orgulho,
Destroem muitas vezes
taes virtudes
Que sós dariam gloria ás
monarchias.
Se afastada a intriga o
rei liberto
Por seus próprios
impulsos se dirige
Quasi sempre se eleva e
n’esse instante
Já renome adquire o seu
reinado.
É a voz da justiça, a
mão do Eterno,
Que os guia n’essas
horas. Chega a sucia,
Então novas mentiras se
succedem,
Malq’renças, despotismo,
sangue, luctas.
Os abysmos, que os
thronos devoraram,
A maldita voragem d’anarchia,
Foi obra dos validos, d’esses
vermes,
Que o sepulchro cavaram dos impérios.
XII
Mas deixemos ai! Sim,
misérias tantas,
Chimeras, que no seio a
dor abrigam:
Deixemos; que no mundo a
felicidade
É um sonho, uma estreita
vaporosa,
Que um momento scintilla
e foge rápida
Corramos pois um veu ao
raciocinio,
E antes que importunos
nos detenham,
Nos reaes aposentos
penetremos.
XIII
A sós estão emfim o rei,
e o duque:
Caprichoso contraste! O
que na terra
O throno ao longe
erguido olhara humilde,
E ante o sceptro
tremendo vacillára;
O que ao ver ante si a
vez primeira
O sólio, pensou ver o
cadafalso,
Do duque seu irmão horrido
tumulo;
Alli hoje sentado, ao
mundo absorto
O sceptro das conquistas
mostra impavido
Cingindo na cabeça a
lusa c’rôa,
Que a seus olhos
primeiro reluzira
Com o fulgor sinistro do
cutelo!
E o outro, que tivera em
régios paços
Dos validos cercado o
áureo berço,
Ao abrigo da purpura e do solio:
Que inda infante se vira
sem ter pátria,
Humilde hoje acolhendo
um nobre indulto,
Que á terra de seus paes
o trouxe provido!
Mundo, ó mundo que és
tu? A humanidade
O que pode valer na
immensa orbita?...
Perante a luz eterna do infinito
Qual fumo as gerações se
vão erguendo,
Que o tempo no seu giro
arrasta ao tumulo.
Avante, caminhar…, eis
surge o abysmo,
Mas, cair é forçoso,
novas gentes
Ao fundo nos impellem, nos arrastam.
XIV
Nem um som a mudez d’esse
recinto
No silencio da noite
perturbara.
Opprimidos estão por
doce enleio,
Que o seu olhar inquieto
a furto exprime;
Por fim do rei a voz o
ecco accorda
Do rei que assim falou:
O regio sangue,
Que vos corre nas veias,
não me impunha
Um dever, que jamais
tinha esquecido.
Mas que só me dictava a
consciência:
Porque essa me accusava,
que innocente.
No exilio mendigava um
tenro joven
O ar, a luz, o sol, a terra
q’rida.
Da pátria; da familia o
doce aflecto,
Porque essa me dizia,
que o meu throno
Direitos se arrogara,
que eram vossos.
E agora vos direi longe a vaidade
O rápido esplendor, a
queda subita
Dos duques de Bragança;
e o regozijo
Que sinto por haver de
novo erguido
Invejada harmonia em torno ao sólio.
XV
N’este reino existiu um
vulto homérico,
Um nome dos mais q’ridos,
d’este povo
Era filho do heroe da
velha Ceuta,
O duque de Coimbra, Atroz
perfidia
Lançou na sua gloria
nódoa escura,
E a vida lhe roubou na
lucta infrene.
Na historia do paiz
sangrenta pagina
Inscreveu a nobreza em
negra lapide.
Do duque de Bragança
atroz inveja
A causa foi tão só; da
nobre victima
O sangue maculou altivo escudo;
E para recobrar perdido
lustre
Viu então erigir-se o
cadafalso;
Cruenta expiação d’um crime horrendo.
XVI
Execrais do monarcha a
ingente gloria?
Do príncipe perfeito a
eterna fama?
Também eu vim chorar
alli no tumulo
Do duque de Vizeu, do irmão q’rido.
Mas, condemnando sempre
a forma barbara,
Que era justo o rigor
pensado havia,
Imperiosa lei já
condemnára
Da nobreza impossiveis privilégios;
A rectidão levou o rei
meu primo
A erguer ante o solio
dois sepulchros,
Ante o mundo, a justiça
proclamando,
Do paiz a concórdia, a
paz futura,
Mandavam, que dobrasse o
feudalismo
As idéas, que nascem,
fero orgulho
Mas hoje, que triumpha a
nova epocha,
Que das luctas passou o
rijo estrondo
Dos tempos que lá vão
era importuna
A justiça, o rigor
inexorável,
O throno ficaria deshonrado,
Se então não extinguisse
das discórdias
O vulcão, que rugia
pavoroso;
Mas agora p’ra sempre se
aviltava,
Se acaso não ouvisse da
innocencia
Gemidos, que nascendo em
terra estranha,
Nos eccos reviviam dos meus paços».
In José Carlos Gouvêa, A Duquesa
de Bragança. Poema em Oito Cantos, Tipographia e Stereotypia Moderna, Lisboa,
1898.