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Conferências.
Decifração
«(…)
Mas voltemos ao texto de S. Jerónimo. Epidémio, quando chegou a Belém da
Judeia, entregou a Jerónimo, que aí fazia vida monástica, um rol de perguntas
ou questões que lhe eram trazidas da parte de Algásia. E a alegorização do
texto prossegue. Ao ler o bilhete, Jerónimo vê nas questões de Algásia um sinal
de que nela se realizam de uma forma completa o interesse pela sabedoria que trouxera
a Rainha de Sabá dos confins do mundo para ouvir a sabedoria de Salomão. E
configura-se a seguinte isotopia per allegoriam: Jerónimo igual a Salomão,
e Algásia igual à Rainha de Sabá. Mas ele não se considera à altura de Salomão,
pois que nem antes nem depois houve homem que o superasse em sabedoria. Mas
ela, sim, ela, Algásia, é uma verdadeira Rainha de Sabá, ela em cujo corpo
domina o pecado e cujo espírito está inteiramente convertido a Deus, porque é
isso que na língua latina significa Saba, a saber, conversão.
Estamos,
pois, em presença de um de muitos exemplos de escrita alegorizante. Não se
trata, na maior parte dos casos, do uso das técnicas retóricas da Antiguidade
com o recurso à metáfora, à metonímia, ao símile e a toda a panóplia de tropos
e figuras. Isso também existe em Jerónimo. Mas é mais que isso, é um desdobrar
permanente de um significado em vários significados de realidades que estão a
outro nível, no texto e além do texto. Não se trata apenas de uma isotopia
coerente que remete termo a termo, metaforicamente, para um universo
referencial de outra natureza. Trata-se, sim, de um discurso cujo significado é
aberto porque se entra nele com a chave de decifração que é o alfa que estava
no princípio e o ómega que estava no fim. Faço uma pergunta: acaso quem assim
escreve, embrenhado nas florestas do significado, poderá seguir outro caminho
na interpretação do texto que não seja per allegoriam? De certo que não.
Aliás, a resposta está neste riquíssimo proémio da Epístola a Algásia, no qual,
após uma análise preliminar das questões que lhe são propostas, Jerónimo faz de
imediato o diagnóstico: dei-me conta de que as tuas questõezinhas dizem
respeito apenas ao Evangelho e aos Apóstolos. Isso quer dizer que quanto ao
Velho Testamento, ou não o leste bastante, ou não o entendeste. E porquê? A
resposta é dada por Jerónimo: primeiro, porque o Velho Testamento está cheio de
obscuridades; segundo porque está envolto em prefigurações do futuro; assim
sendo, todo ele necessita de interpretação.
Em
resumo, o que diz Jerónimo é que a questão não está em legere mas em legere
satis e, mais ainda, em intellegere, ou seja, não está em ler, mas em
ler bem e entreler ou ler entre: ler entre as obscuridades de um texto de
outras épocas, por vezes de transmissão corrompida, e principalmente entre as
obscuridades de sentido decorrentes do próprio mistério nele contido e da
prefiguração futura escondida sob a capa dos acontecimentos presentes. O que é
quase o mesmo que dizer: não é possível ler senão perspectivando o presente na
mira do futuro, recorrendo para isso à interpretação per allegorian. Não
há outra forma de passar do nível da lectio ao do intellectus, da
lição ao da intelecção.
Há
uma lei essencial da alegoria que vários autores repetem e que S. Jerónimo
formula da seguinte maneira: a porta oriental do Templo, da qual surge a
verdadeira luz e pela qual entra e sai o sumo-sacerdote, está sempre fechada, e
só se abre a Cristo que tem a chave de David, que abre e ninguém fecha: fecha e
ninguém abre. Nesta simples frase, com toda a beleza poética e majestade
bíblica, Jerónimo, por uma série de referências em cadeia que passam pelo
Profeta Ezequiel, pelo Apocalipse e pelo Cântico dos Cânticos, Jerónimo, digo,
repete um princípio que, como já referimos, se encontra no comentário ao
Apocalipse de Vitorino de Petau: a chave do Antigo Testamento é o próprio
Cristo. A interpretação alegórica, ou simplesmente o comentário bíblico medieval
é, deste modo, como que assimilado aos passos da tradição bíblica em que se
fala da apertio tibrí. É-lhe conferida uma dignidade e uma sublimidade
que ultrapassa a simples interpretação de um texto. Por trás disso, está a
leitura do plano de Deus, sobre o sentido da vida humana, do drama da história,
da criação e do universo. Mas por Ser uma tarefa grandiosa reservada a santos
varões de reconhecida idoneidade, e atentamente vigiada pela Igreja para
assegurar a sua ortodoxia, criou desde cedo uma certa padronização». In
Arnaldo Espírito Santo, Da Decifração em Textos Medievais, IV Colóquio da
Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002,
Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.
Cortesia
de Colibri/JDACT