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Conferências.
Decifração
«(…)
Um dos instrumentos mais úteis para a criação de parâmetros comuns foram as
listas infindáveis de nomes próprios com explicação etimológica. Da autoria,
pelo menos parcial, de S. Jerónimo, ou a ele atribuídos, chegaram até nós
vários tipos desta espécie de elencos de significados etimológicos e simbólicos
de nomes proprios. Às vezes as etimologias são forçadas, outras quase absurdas
ou contra o génio da língua; a culpa não é de Jerónimo que assim as encontra já
vulgarizadas. Dou um exemplo: Belial enim ínterpretatur absque jugo. Et
notandum est quod omnes, qui ebrietatem sectantur, filií Belial vocentur.
Traduzo:
Belial quer dizer sem jugo. E note-se que todos aqueles que seguem a embriaguês
se chamam filhos de Belial. E uma sentençazinha de carácter moralizante que
como tal estava destinada a ter futuro. Rabano Mauro, no século IX, repete-a ipsis
verbis nos seus Comentários aos Livros dos Reis; e Angelomus de Luxeuil, do
século IX, faz o mesmo nas suas Enarrationes in libros Regum.
Haimo d'Auxerre (também do século IX) cita a primeira parte, Belial quer dizer
sem jugo, omite a segunda parte, que associa sem jugo a embriaguês, mudando
completamente o rumo da interpretação ao acrescentar: misticamente ordena-se à Igreja,
oprimida pelo Diabo com o pesadíssimo jugo da idolatria, que, libertada pela
paixão do Senhor, celebre as festividades etc.
Mas
o mesmo autor, num comentário às Epístolas de S. Paulo, aplica a mesma etimologia
de Belial a um outro contexto, extraindo dela este significado: Belial quer
dizer sem jugo, significando o diabo que sacudiu da sua cerviz o jugo de Deus
Omnipotente. Assim se foi propagando este pequeníssimo comentário de autor em
autor, como aconteceu a muitos outros, até constituir um lastro de cultura, por
enquanto no âmbito do texto escrito. Mas um dia um pregador, leitor destes
comentários, utilizou-o num sermão. E daí passou para o domínio público. Foi
exactamente isso que aconteceu, já que o mesmo Haimo de Auxerre utilizou essa
expressão numa das suas homilias. Utilizou-a também Godefroid d’Admont no
século XII nas suas Homiliae dominicales. E sobretudo foi utilizada por um
autor desconhecido num dicionariozinho que serviu de índice às Homilias
Dominicais e que exerceu, decerto, uma influência incalculável na elaboração de
tantas homilias de que não nos resta hoje uma só palavra. Forma-se assim uma
cadeia de transmissão que talvez venha a encontrar o seu destino final em
alguma obra vernácula, e quem sabe se foi cientemente ou não que o seu autor
utilizou essa expressão. Não sei se tal aconteceu. Só sei que a mesma expressão
vai aparecer em Guibert de Nogent, séculos XI-XII, nos seus Moralia in Genesim,
em Bruno Segui (séculos XI-XII) no Comentário ao Pentateuco, em Rupert de Deutz
(séculos XI-XII), no tratado sobre a Santíssima Trindade e no comentário aos
doze Profetas menores. Enfim, num autor desconhecido de uns sermões, em Pedro
Abelardo (século XII), e em mais meia dúzia de Autores.
A
conclusão que se impõe é que a escrita alegorizante está tão divulgada como a
interpretação alegórica, mesmo em textos vernáculos, cuja leitura ou decifração
não pode ser feita sem esta perspectiva. E quando lermos, num autor qualquer,
que em hebraico Adam quer dizer Homem, ou que ou o texto grego ou o texto
hebraico de determinado passo da Bíblia apresenta uma leitura diferente da
versão latina, não vamos deduzir apressadamente que o autor lia essas línguas,
mas simplesmente que retirou a sua informação de um comentário anterior ou de um
lexicon do género daqueles que tenho vindo a considerar. E não nos precipitemos
a indicar a sua fonte porque a origem da sua informação pode derivar de uma
dúzia de autores.
Segundo
as leis da alegoria
A
alegorização do texto, quer como forma de escrita, quer como método
hermenêutico, tem as suas leis. A expressão leges allegoriae é usada por S.
Jerónimo (2 vezes), por Beda (5 vezes) e por João Escoto Erígena (1 vez).
Dissemos há pouco que, em rigor, só pode ser objecto de decifração alegórica um
texto construído sobre uma cifração alegorizante, no sentido, insisto, de que
um sistema coerente de isotopias instaura um processo de remissões, termo a
termo, para um universo referencial de outra natureza, pela coexistência sistemática
de dois níveis de significado, o literal e o simbólico. S. Jerónimo é, talvez,
o autor que revela uma consciência mais aguda da distinção entre poiética e
hermenêutica, entre codificação e descodificação». In Arnaldo Espírito Santo, Da
Decifração em Textos Medievais, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação
Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003,
ISBN 972-772-425-6.
Cortesia
de Colibri/JDACT