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As normas foram sendo estabelecidas nos documentos comuns saídos dos capítulos
gerais e o próprio texto fundamental da Carta de caridade, aprovado em 1119
pelo papa Calisto II, sofre as consequências de reelaborações sucessivas, sendo
as estratificações reconhecíveis, mas nem sempre determináveis por
documentação. Ficam também pouco evidentes os acontecimentos que lhes possam
estar na origem ou os responsáveis que redigiram os textos cujas redacções se
foram sucedendo. A memória entremeia neles com as reflexões ou as mensagens que
se desejam transmitir num momento determinado, sem que seja fácil recuperar as
tensões reais ou desmontar os mecanismos mais significativos. No entanto, as diversas
redacções têm de ser assumidas como reflexo de ambientes que, em repristinações
do passado, vão lançando modelos que são tentativas de aperfeiçoamento. Esses
textos primitivos constituem as referências cistercienses mais específicas. A
sua história é confusa e complexa, até porque os testemunhos foram sendo
substituídos à medida que novas situações levaram a reformulação textual. Há a
reconhecer, aliás, que, tratando-se de textos em formação eram também
instrumentos de formação, cujo conhecimento devia ser posto ao alcance dos
noviços que se preparavam para entrar nas comunidades cistercienses, ficando,
pois, a sua transmissão sujeita aos mecanismos da leitura feita pelo mestre do
noviciado. De qualquer modo, quando Bernardo Fontaine dá entrada no mosteiro de
Cister, não muito longe do seu lugar de nascimento, as decisões de base estavam
já tomadas; mesmo que nesses documentos primitivos se possam detectar elementos
que se identificam com passos das suas obras, as suas intervenções, directas ou
por entreposto leitor dos seus textos, terão sido pontuais e fica-nos sobretudo
a expressão comunitária de um grupo marcado desde a origem pela busca da unanimidade.
Não é nosso propósito dirimir aqui problemas de acumulações ou de reformulação
nem tão pouco indagar a autoria de cada intervenção ou mesmo identificar
qualquer ramo de tradição mais autónomo. Apenas nos move apresentar uma
tradução, fiel e fundamentada, desses textos, na forma mais aceite pela
tradição cisterciense, a fim de que possa ser reconhecida.
É
certo que poderíamos ter recorrido às traduções medievais do Fundo Alcobacense.
No entanto, haverá que confessar que, por mais venerandas que elas sejam, a
distância a que colocaríamos qualquer leitor não andaria muito longe da que
supõe o próprio texto latino. De qualquer modo, porque a própria história do
texto interessa para reconhecer os momentos originais da vivência cisterciense,
na introdução a cada um dos textos, tentar-se-á apontar a problemática de base,
sem presumir de qualquer solução, pois ela está longe de ser pacífica ou
líquida. Na bibliografia de referência poderá encontrar-se o complemento necessário
para aprofundamento das questões que continuam a pender sobre os primeiros
tempos da reforma cisterciense. Tenha-se presente, neste aspecto, que a
estrutura cisterciense assenta em dois pilares: a) o direito constitucional,
formado pelos textos orgânicos que criam e organizam a Ordem de Cister; b) o
direito não constitucional, isto é, das regras de âmbito diverso,
administrativo, litúrgico, económico, disciplinar, que regem a vida de todas as
abadias. E no Capítulo Geral da Ordem, que reúne anualmente todos os Abades,
que se estipulam as regras de funcionamento.
Conhecem-se
ainda mal as fases de evolução das codificações do século XII, pois a tradição
sofre soluções de continuidade que nem sempre é possível colmatar, até porque a
substituição levava à eliminação de instrumentos anteriores. De qualquer modo,
parece possível resgatar alguns dos elementos mais antigos e perceber o seu
valor. A tradição faz remontar aos anos 1120 - 1130 as primeiras tentativas de codificação
das orientações fundamentais: para a liturgia, os Ecclesictstica officia;
para os conversos, os Usus Conversorum; para a organização da vida
monástica, os Instituta, na diversidade de regras, sem sistematização aparente.
Na base, ficava a Carta caritatis et unanimitatis como referência
fundamental que tudo enformava, mas, mesmo esta, não era texto
imutável.
Por outro lado, a comunidade monástica não deixou já nos primeiros tempos de lançar
por escrito os primeiros elementos de uma memória colectiva que já é
engrandecedora para os primeiros momentos da Ordem; pertence-lhe o Exordium Paruum
(assim designado para distingui-lo do Exordiurn Magnum, de maiores dimensões
que escreveu mais tarde, entre 1190 – l210, Conrado de Eberbach, monge de
Claraval, ainda que não seja inconcussa a relação estabelecida com o Exordium
Cistercii». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições
Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
Cortesia de
Colibri/JDACT