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A sensibilização para a integralidade do projecto cisterciense animará
porventura alguns a indagar das suas razões, não apenas em atitude intelectiva
de análise de fontes, mas em experiência de vida, quando descobrirem que a vida
monástica é, a vida cristã que rompe todos os vínculos (...) que a impedem de
ser integral. A leitura dos primitivos cistercienses impõe-se a todos quantos
queiram reavaliar o sentido da preservação de uma memória que não se contente
com um vago sentimento de nostalgia ou preservação de monumentos. É impossível
ficar indiferente à experiência cisterciense, pois ela marcou a Europa ao longo
de séculos e sobretudo nos alvores de um período particularmente fecundo da
gestação do mundo ocidental em que vivemos. Os monges de Cister traçaram caminhos
que são itinerários, deixaram edifícios que são monumentos, arrotearam terras
que são definitivamente espaços humanos. As suas vozes são reconhecíveis no
silêncio dos seus livros e dos seus documentos. Não basta recordá-los, é
necessário ir-lhes ao encontro. Como escreveu Dom Maur Cocheril, monge
cisterciense que longamente percorreu os caminhos portugueses dos seus irmãos
de outros tempos:
Quando
os monges, durante séculos e séculos,
impressionaram
com a sua marca uma terra,
ainda
que não ficasse da moradia dos monges
senão
uma pedra que se desagrega,
senão
um grão de areia que se esboroa,
a
pedra, a areia falam dos monges.
Mesmo
que a pedra e o grão de areia
por
seu turno desaparecessem,
a
terra, a velha e nobre terra,
a
terra sobre a qual os monges se debruçavam,
o
vale em que rezavam,
as
árvores que plantaram
continuariam
a falar deles.
Porque,
durante séculos e séculos,
os
monges impressionaram com a sua marca uma terra.
A
tradução dos primitivos documentos cistercienses que aqui oferecemos deseja
servir de apoio para a descoberta dessas marcas. In Aires A. Nascimento
Os
inícios da Ordem Cisterciense: exordium paruum
A
memória de Cister cedo procurou constituir testemunho dos acontecimentos em forma
narrativa. Não há, porém, indicação explícita e directa de quem o faz e quando
isso acontece ou quais as razões que estão subjacentes a um acto de memória
apresentado como tal. Reconhece-se facilmente que isso dá lugar a uma encenação
em que os fundadores de Cister tomam sobre si a responsabilidade de uma
narrativa em que já são notórios desenvolvimentos que ocorreram ao longo de uns
vinte anos, desenvolvimentos esses que não estavam de forma alguma contidos no primeiro
plano ou propósito de reforma monástica que Roberto e seus companheiros
pretendiam levar a cabo. A repristinação dos acontecimentos tem certamente uma
intenção. Várias propostas têm sido aventadas para explicar essa primeira
memória e a verosimilhança joga com a carga de significação atribuída aos dados
do texto.
Um
cenário possível para a sua elaboração é o da entrada de um contingente significativo
de monges em torno de 1132, que desencadeia ou apressa (caso se aceite a
hipótese de Estêvão Harding ter concebido antes tal projecto para obviar a
dificuldades económicas da primitiva comunidade) a fundação de novas abadias.
Qualquer dos dois factores, em si, e sem que a conjugação deles se revele essencial,
pode ter gerado a necessidade de dar testemunho dos primitivos anos de
implantação da nova observância monástica (tão nova se pretendia que o próprio
mosteiro tinha sido designado por novo, Nouum Monasterium, e só posteriormente
o nome alterna com o topónimo Cistelium, convertido do nome comum deduzido das
características físicas do local, talvez por sobreposição de nova interpretação
de um antigo nome derivado da existência de um marco miliário, cis-tertium). Dirigido
a um novo grupo, que representava uma nova geração e se assumia com uma
dinâmica que se vê retratada em Bernardo, monge saído da fidalguia borguinhona
e que tem no terreno apoios que lhe permitem lançar Claraval e ganhar
liderança, pode representar a reacção dos mais antigos que desejam afirmar as razões
da sua iniciativa primeira e dar conta da sensatez das opções tomadas ao longo
das primeiras duas décadas, ao mesmo tempo que se revêem na juventude que agora
aparece disposta a assumir as responsabilidades de continuadores. Porém, o
confronto que o texto revela entre esses dois grupos é por demais pacífico para
exigir que lhes reconheçamos uma interpenetração de perspectivas e para
pressupor a veneração dos primeiros tempos de uma história comum em nome dos fundadores».
In
Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri,
Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
Cortesia de
Colibri/JDACT