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Estaria em concordância com a data indicada a referência ao comportamento
negativo do papa Pascoal II que se deixou cair nas mãos do imperador germânico
a ponto de lhe conceder (por extorsão no cárcere) o privilégio das investiduras
(pecado de funestas consequências e que os cistercienses procuraram combater
juntamente com o episcopado francês e com a intelectualidade mais empenhada do
tempo). No entanto, o teor da referência é, demasiado genérico, pelo que parece
serem de postular alguns anos de intervalo, quando a própria actuação
pontifícia assume a questão de forma mais radical. Esta situação pode ver-se
reflectida na personalidade do papa Calisto II, com a vantagem de ela aparecer
como referência explicitadora de outros elementos. De facto, enquanto bispo de
Vienne, ele fora um dos mais virulentos opositores da actuação de Pascoal II.
Por outra parte, é a ele que os fundadores, motivados certamente pela
familiaridade mantida nas negociações para a fundação da abadia de Bonnevaux
(entre 1117 e 1119), recorrem a fim de obterem a confirmação dos seus actos, dos
Capítulos e Constituições, ou, noutra formulação, de alguns capítulos relativos
à observância da Regra de S. Bento e a algumas outras aplicações ditadas pela natureza
da Ordem e da fundação. A aprovação teve lugar a 23 de Dezembro de
1119.
Fosse
para apoiar as suas pretensões, declarando que desde sempre os fundadores se
tinham pautado por formas canónicas e em harmonia com as autoridades (pelo que
se lembravam os actos do arcebispo de Lião, legado pontifício, e as aprovações
do papa Pascoal II), fosse para enquadrar o acto pontifício que lhes chegava, o
Exordium traçava as linhas da evolução da nova observância. Não servia menos
para celebrar com regozijo a expansão da nova Ordem, colocando como
demonstração da benevolência divina e aprovação das opções tomadas a entrada
maciça de novos monges, que permitiam a difusão para longe das fronteiras
primitivas. Aos que iam tomando as responsabilidades noutros lugares não era
certamente molesto lembrar o percurso que fora feito e a necessidade de manter
a coesão, a unanimidade, pois todos a queriam preservar nesses anos de fervor.
O
artifício do discurso em primeira pessoa que encontramos no início do documento
pode dever-se a uma transposição literária que o próprio abade do momento,
Estêvão Harding, depois de ter visto partir Roberto (forçado a regressar a
Molesme, no ano imediato ao da fixação em Cister) e de ter assistido à morte de
Alberico, dificilmente reivindicaria para si em exclusivo. Mas, se alguém o endossava
a todos, a comunidade inteira participava da rememoração. É provável, no
entanto, que a forma actual do Exordium Paruum seja resultado de intervenções
posteriores, onde se reflectem tensões que se tornam mais evidentes entre 1130
e 1150 entre cistercienses e clunicenses. Nessas condições, um Exórdio Primitivo
que acompanharia os documentos apresentados ao papa e bem assim,
posteriormente, a bula de aprovação, teria sofrido remodelações, mas elas são
difíceis de determinar. Poderá imaginar-se também que a celebração dos
primeiros capítulos gerais, em que tomavam assento os abades da primeira
geração (todos eles saídos de Cister, mas com pouco tempo de permanência na
casa-mãe, pois, pouco mais de um ano após a entrada e uma vez realizado o ano
de provação haviam partido), tenha sido ocasião para constituir uma primeira
redacção dos factos primitivos.
O
carácter elaborado desse início do EP, com estrutura de epitáfio (em que se
nota a identificação de um sujeito de relação, a mensagem de base, o apelo à
rememoração do leitor) bem como a forma de organização, de todo o texto obrigam
a atribuir-lhe, mais que uma data, uma intenção. É evidente um propósito
didascálico e revalorizativo desses inícios, com afirmações tão características
como o de acentuar a legitimidade canónica da fundação e a creditação do género
de vida através de normas bem definidas. O final do documento, ao assinalar,
por outro lado, o acontecimento da entrada de Bernardo e dos seus familiares,
deixa em aberto a suspeita de alguma tentativa de valorização intensiva de um
momento privilegiado, se é que não também alguma tensão momentânea entre duas
gerações (representadas emblematicamente por Estêvão e Bernardo), tensão essa
superada no reconhecimento das diferenças e na alegria de viver num mesmo
projecto de perfeição.
Por
outro lado, não é de excluir que a redacção tenha sido objecto de amplificações
ou refundições e acrescentos motivados por circunstâncias várias, mormente as
tensões entre monges negros (Cluni) e monges brancos (Cister), em tempos em que
Molesme decaía do seu fervor primitivo e se tornava necessário reafirmar a
pureza de intenções dos fundadores, em tom mais ou menos polémico, o que nos levaria
para uma data entre 1140 e 1150 e permitiria explicar alguns dados, como a
ruptura com o duque e a proibição de utilizações do mosteiro por parte dele ou a
referência à confirmação da Carta Caritatis, dados esses mais plausivelmente
atribuíveis a reformulações tardias, com a particularidade de relativamente ao
último elemento se remeter para momento em que as abadias eram doze». In
Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri,
Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
Cortesia de
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