‘No auge da tempestade há sempre
um pássaro para nos tranquilizar. É a ave desconhecida que canta antes de voar’.
In
René Char.
Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha.
Sou o vento que a desgasta.
Sou pólen sem insecto.
Sou areia sustentando
o sexo das árvores.
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro.
No mundo que combato
morro
no mundo por que luto
nasço.
(1977)
Trajecto
Na vertigem do oceano
Vagueio,
sou ave que com o seu voo
se embriaga.
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso.
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta.
Na distância que percorro
eu mudo de ser,
permuto de existência,
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade,
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo,
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher
(1980)
Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz
de Orvalho e Outros Poemas’
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